Arquivos contra-hegemônicos para outras histórias da arquitetura brasileira

Como pensar arquivos contra-hegemônicos para outras história da arquitetura brasileira?

por Giselle Beiguelman*

Na tradição ocidental, a arquitetura nasce sempre como imagem. Entre o desenho e o desígnio, fica o projeto e o desejo de um dia tornar-se ruína. Essa utopia contamina a arte de construir moderna _ que para nós, historiadores, é um período entre os secs. 16 e 18_; o paradoxo modernista de fazer tabula rasa do passado e ambicionar-se eterno; e o remix x-tudo pós-moderno, nas suas apropriações da história, para além de qualquer vínculo com a historicidade das coisas. 

São essas, grosso modo, as matrizes do arquivo de arquitetura, constituindo-se como um vasto repositório distribuído. Nele se empilham plantas, fotos, desenhos, infografias e obras propriamente ditas, que ocupam documentos cartoriais, bibliotecas especializadas, gavetas e servidores de escritórios públicos e privados, além das ruas e outros espaços organizados, do campo à cidade e vice-versa. 

O que fica fora do arquivo institucional?

Ernesto Oroza. Alamar, 2012. Arquitectura de la necesidad

As tecnologias informais, as gambiarras e as “arquiteturas da necessidade”, como chamou o artista cubano Ernesto Oroza, não figuram no recorte do que o arquivo institucionalizado identifica como arquitetura, ou documento de arquitetura. Muito provavelmente porque essas formas de habitar e ocupar o espaço nunca efetuaram a passagem da bidimensionalidade do projeto/ registro para a tridimensionalidade do espaço. Suas imagens são mentais e se concretizam diretamente no vivido e em processo.

Vania Medeiros, Caderno de campo, 2016.

Contudo, apesar de suas ausências nos arquivos institucionaais, exceto nos registros policiais, onde são dominantes, são as imagens dessas arquiteturas “sem-papel”, as que prevalecem nas redes. Uma consulta ao Google Trends, uma espécie de bússola do Google que mede a temperatura dos termos mais buscados no seu search engine, mostra diferenças estarrecedoras entre os termos Favela, cujo interesse chega a 100 (o ponto máximo do índice do Google), no último ano, e Arquitetura Moderna, Paulo Mendes da Rocha e Lucio Costa, cujo interesse é praticamente nulo.

Esse desequilíbrio de interesses é mais instigante quando confrontado com os resultados de uma busca feita pelos mesmos termos na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, onde a presença do termo Arquitetura Moderna é 36.3% maior que o termo Favela, o qual, em números, é muito próximo da quantidade de teses sobre Paulo Mendes da Rocha e Lucio Costa. Advirto que a escolha de Mendes da Rocha e Costa não obedeceu a qualquer critério científico sobre o who is who na história da arquitetura brasileira, algo que eu não teria bagagem para defender. Antes, concentrou-se em dois casos de acervos que migraram para o exterior recentemente e acenderam o debate sobre os arquivos de arquitetura no País.

Teses e Dissertações 2005 – 2023
Favela 1619
Arquitetura Moderna 2210
P M da Rocha 1086
Lucio Costa 935

BDTD. Acesso em 05/08/2023

O que os dados nos dizem?

Criar uma hipótese sobre a relevância da arquitetura informal em relação à arquitetura institucionalizada, pelo nível de interesse mobilizado nas redes, contrapondo-os ao que se pesquisa nas universidades brasileiras, seria por demais leviano, pois seu fundamento seria quase que exclusivamente algorítmico. 

Ainda assim, considero que a lógica da “wisdom of crowds”, e com base na rica investigação em desenvolvimento no nosso Projeto Temático Fapesp (Acervos Digitais e Pesquisa), que o desafio de inventar os novos arquivos da arquitetura brasileira passa por procedimentos que atentem à documentação social que é disponibilizada nas redes, com recursos de Inteligência Artificial e Visão Computacional. 

Isso poderia permitir voos mais arriscados, mais aderentes aos olhares locais e mais condizentes com o que a um arquivo de arquitetura teria de ser: um corpo sem órgãos, no sentido mais deleuziano possível, capaz de identificar não tipologias específicas, mas diversidades, contradições, inclusive de formas sobre como os padrões modernistas são negados e incorporados nas suas estruturas físicas e sociais, seus abusos e soluções ambientais.

(Resumo da apresentação feita no Colóquio Desenquadrar a arquitetura, deslocar a história | Org. Eduardo Costa e Junia Cambraia Montimer | FAUUSP 10 de agosto de 2023)