A imagem documental da arte, da arquitetura e do design

Por Ana Gonçalves Magalhães e Giselle Beiguelman

Imagens da pesquisa realizada para o documentário Domingo no Golpe (2024)

A imagem documental de arquitetura, assim como a do design, dominante nos arquivos e museus especializados, não mostra os prédios ocupados, nem os objetos em uso. No máximo, no que tange à arquitetura, insere alguém como medida da escala da construção. No que diz respeito ao design, um tanto quanto paradoxalmente, os objetos aparecem isolados, como entes em si mesmo.

O mesmo ocorre com as obras de arte, sejam elas pintura, escultura, fotografia, instalações e objetos site-specific de todos os tipos, ou obras de arte digitais. Não temos imagens mentais de edifícios de uso público modernos, vistas a partir do seu interior, tomados por multidões, como as que aprecem no documentário Domingo no Golpe, feito com as imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto liberadas à imprensa pelo GSI, por ordem do STF.

Talvez nossas imagens mentais, nessa relação multidão/ espaço moderno no Brasil, se resumam na atualidade ao prédio da Bienal e ao salão caramelo da FAUUSP. Essas poucas imagens mentais, no entanto, remetem a um perfil de movimentos sociais mais à esquerda e não de massas de pessoas de direita.

Não temos um olhar educado também para imaginar os espaços modernos, especialmente os de Brasília, sucateados pelas diversas estéticas da burocracia, como as divisórias bege, as tiras de durex colorido cortando os vidros, e a imensa quantidade de catracas eletrônicas, detectores de metal, monitores baratos, cordas, raio-x etc. Elas são hoje preponderantes nas imagens, demolindo os princípios de “palacete de vidro” de Lucio Costa, com todos os conceitos aí implícitos, e enchendo o espaço de objetos de um design anódino e agressivo.

Patrimônio em disputa e sob ataque

A decoração desses espaços também foi se desvirtuando ao longo da história de uso desses espaços. No caso das obras de arte que decoram há mais de 50 anos os Palácios do Planalto e da Alvorada (sede e residência da presidência da República, respectivamente), destaca-se um decreto lei do Presidente Luís Inácio Lula da Silva de 2009, que instituiu uma comissão de curadoria para ambientação dos palácios do governo.

O segundo governo Lula tratou de legitimar o que vinha sendo construído desde o processo de redemocratização do Brasil, com a nova constituição de 1988, em que funcionários da Superintendência do IPHAN do Distrito Federal foram destacados para cuidar da ambientação dos palácios. A institucionalização de uma curadoria para essa atividade reconhece as obras de arte ali presentes como acervo a ser cuidado.

Em 2019, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro revogou o decreto lei de instituição de uma comissão de curadoria para os palácios do governo. Tal ação foi seguida não só de comissionamentos de pinturas e esculturas para a projeção da imagem de Bolsonaro individualmente, ligada a ideias messiânicas e cristãs antidemocráticas, de qualidade mais do que duvidosa. Além disso, durante seu mandato, obras de arte que já estavam na decoração dos prédios foram negligenciadas, conforme relatos feitos à imprensa nacional logo depois da posse da nova presidência da República.

Isso não se limita aos espaços invisíveis (os subterrâneos das entradas “de serviço”), mas também está presente nos espaços de uso “nobre” (até quando manteremos essas denominações espúrias, não sabemos. Mas fato é que elas denominam não só os vídeos das câmeras de segurança, mas também, oficialmente, os locais). As cortinas rotas (a existência mesmo dessas cortinas não fere o projeto do Palácio?), os equipamentos de áudio e vídeo, desajeitadamente colocados sobre as obras artísticas, como uma tapeçaria de Burle Marx, são um indicativo que o projeto de uma “modernidade bossa nova” não resistiu ao uso dos sucessivos governos e desgovernos que ocuparam o edifício.

Estéticas da burocracia

Incrível também o luxo entremeado nos materiais, das paredes de granito preto (um tanto quanto desgastadas pelo tempo e pela falta de cuidado), os mármores brancos do piso, a madeira maciça dos móveis. Tudo emporcalhado pela estética da burocracia e a falta de cuidados mínimos com o prédio. Há ainda muitos recipientes de álcool em gel (provavelmente vazios) colados nas paredes tão ricas.

Rir ou chorar diante disso? Rir porque são heranças da presidência de Bolsonaro, o incrível ser que negou a realidade da Covid, ou chorar, pelo dano que causam aos materiais em que são fixados sabe-se lá com quê …

Entretanto, há uma história dos materiais implicada nesses processos. Diante da destruição, somos desafiados a pensar a relação com os materiais. O que nos conta uma janela quebrada sobre as minas de sílica que estão nos seus primórdios? E um mármore quebrado? Ao que se liga ? De onde veio? Qual seu território?, pergunta o pesquisador Eduardo Augusto Costa.

Contudo, como deixar de se indignar com as diversas interferências feitas ao longo do tempo, maculando a suntuosidade de um poder que carrega consigo todas as ambivalências do modernismo brasileiro que Brasília condensa: os espaços abertos, a transparência do vidro e sua total desconexão com a realidade brasileira.

As imagens de Brasília privilegiam a “casca” de seu imóveis (as fachadas), em pontos de vista que se repetem na angulação e nos detalhes. As imagens das câmeras de vigilância do Palácio do Planalto apresentam pontos inéditos, permitem percursos por dentro dos prédios, enunciam um cotidiano que sugere uma outra pedagogia do olhar sobre o poder. Os ângulos do posicionamento das câmeras fazem saltar aos olhos quinas, cantos, perspectivas oblíquas que são um quase anti-Niemeyer, numa de suas arquiteturas mais consagradas que é o Palácio do Planalto.

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