Dinâmicas do espaço público: Terra de ninguém

por Giselle Beiguelman

Nas imagens do 8 de janeiro liberadas pelo GSI à imprensa, por ordem do STF, chama a atenção também o espírito de manada, a forma como a “irmandade” comemora a destruição do patrimônio público. A fúria, aliás, contra o patrimônio público é um traço da iconoclastia dominante nesse 8 de janeiro. Nada escapa do exército verde amarelo “cebefista”. O que isso diz sobre nossa direita e sua compreensão do espaço público como terra de ninguém? Esta foi uma pergunta que nos fizemos várias vezes ao longo da pesquisa para a realização do documentário Domingo no Golpe (2024).

A imagem da obra de Di Cavalcanti esfaqueada é uma chave para entender os acontecimentos ocorridos naquele domingo. Apesar de não ser a única desse perfil, infelizmente, ela traduz não só o aleatório da violência que testemunhamos, mas a clareza de seus alvos. Atacar as obras de arte revela o desprezo e o ódio contra a cultura. A foto desse quadro perfurado sete vezes é uma espécie de clímax de uma narrativa da extrema direita que insiste em mostrar seu desrespeito às instituições, aos seus processos e à democracia, reiterando seu manifesto interminável contra o patrimônio público e a história.

Como se sabe, essa obra de Di Cavalcanti, a tela “As Mulatas”, de 1962, foi uma das vítimas, e não a única, da turba que invadiu as sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do governo federal. Fotos e vídeos, muitos dos quais produzidos e divulgados pelos próprios golpistas, são eloquentes sobre o rastro de destruição deixado, semelhante ao da violência das guerras.

A avalanche imagética que se seguiu na televisão e na internet chocou a todos e recordou, para vários, duas pinturas de Oscar Niemeyer, conhecidas como “Ruínas de Brasília”. Feitas em 1964, em Paris, essas duas pinturas mostravam as célebres colunas do Palácio da Alvorada, de sua autoria, tombadas sobre um fundo lúgubre e quase sem luz.

Expressavam sua reação ao golpe que transformou a capital em sede da ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Ruínas, no entanto, como aprendemos com o pensador alemão Walter Benjamin, guardam consigo uma ponta de futuro, porque presentificam o vivo na morte. São, por isso, um fragmento da história, expandindo a memória num arco temporal que abrange seu antes e seu depois.

Multidão verde-amarela cebefista

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

Por esse motivo, outro pensador alemão, Andreas Huyssen, diz que o século 20 não foi capaz de criar ruínas, apenas escombros. As imagens das cidades devastadas pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial o convenciam disso. Se as ruínas expressam a “saudade de um futuro alternativo”, como identificar ruínas naquelas paisagens abortadas do tempo de forma tão cruel? A mesma pergunta cabe diante da agressão ao patrimônio público feita pelos “verdeamarelistas” que invadiram a praça dos Três Poderes.

Não que alguém esperasse da parte desses golpistas algum tipo de empatia com a arte, o patrimônio ou as instituições. Afinal, eles foram a Brasília em nome da continuidade de um projeto de destruição que atingiu as mais variadas áreas. 

As imagens que vimos do ataque de 8 de janeiro têm grau de violência equivalente às dos enterros em massa na pandemia, às dos incêndios de florestas, assim como o desmonte da cultura e dos órgãos do patrimônio histórico promovidos ao longo do governo Bolsonaro.

As imagens desse fatídico dia nos chocaram não porque seríamos ingênuos sobre o perfil dos golpistas, mas porque enunciam visualmente aquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de “estado de exceção como paradigma de governo”. Um estado de torpor e violência institucional, cuja eficiência depende não da supressão da lei, mas da invenção de uma lacuna fictícia que, em caso extremo, cria uma área em que essa aplicação pode ser suspensa, ainda que permaneça em vigor.

Essa fratura do direito é fundamental para entender o delírio dos golpistas em Brasília e de sua apropriação destrutiva do patrimônio coletivo. Sua truculência mostra que a discussão sobre o direito à memória é indissociável da do direito ao espaço público, entendido como espaço de conflito e negociação, socialmente produzido. Essa noção se opõe radicalmente à compreensão equivocada e criminosa, patente na invasão da praça dos Três Poderes.

Para os golpistas que violentaram as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, o espaço público é entendido como terra de ninguém ou propriedade de cada um. Isso implica ignorar o fundamento das instituições como mediadoras das instâncias coletivas. Além do mais, expressa a incapacidade de entender que discutir o bem público é falar do bem comum e de como o compartilhar.

É fato que grande parte do patrimônio atacado é modernista e que o tema é prenhe de contradições. Essas contradições vão da ideia de Brasília como ocupação do “puro vazio” até as diversas histórias da arte que vem problematizando as narrativas do modernismo brasileiro. Contudo, a invasão golpista não tem qualquer traço crítico ou foco particular sobre essas questões. Tem só ódio à cultura.

Como foi fartamente noticiado e visto nas redes sociais, e particularmente nas imagens das câmeras de vigilância do Palácio do Planalto, os ataques miraram tudo o que viam pela frente. Foi uma ação no estilo Blitzkrieg, ou guerra-relâmpago, que, como tal, busca o maior saldo possível de destruição, pelo efeito surpresa, rapidez e brutalidade do ataque. Como tanques alucinados, a turba foi ao confronto direto com todas as instâncias concretas da arte, da história e especialmente dos lugares de exercício institucional da democracia.

Os prejuízos dos ataques, dadas as suas dimensões, não foram totalmente contabilizados, mas incluem obras de diferentes perfis e quilates, que impactaram a arquitetura, o mobiliário e os acervos artísticos dessas instituições. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, ainda não sabe se todas as obras poderão ser recuperadas, mas aventa a construção de um memorial da democracia com as obras atacadas. De que forma elas serão apresentadas, ainda é cedo para saber. 

Contudo, é inegável que essas obras, em grande parte expressão da herança moderna que o poder forjou sobre si mesmo, ganharam outras dimensões desde o oito de janeiro. Essas dimensões são políticas e estéticas. Remetem, por isso, a pensar em como fazê-las contar narrativas dissidentes das oficiais e sobre os que tentaram silenciar a democracia em nome do ódio. Talvez isso seja a chave para pensar as imagens descartáveis das câmeras como arquivo e lugar de memória nato-digital.

Domingo no Golpe – Pesquisa

Domingo no Golpe, documentário de Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi sobre o ataque golpista de 8 de janeiro de 2023, envolveu ampla discussão do grupo de investigadores do nosso Projeto Temático Fapesp e do pesquisador convidado Lucas Bambozzi. Destacamos abaixo alguns pontos desses debates:

O que dizem as imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto?

por Giselle Beiguelman

As imagens dos atos golpistas de 8 de janeiro disponibilizadas pelo Gabinete de Segurança Institucional à imprensa são emblemáticas de algumas peculiaridades da cultura da memória na atualidade. Entre elas, destacam-se a superprodução de registros que são criados para serem esquecidos, como as que são produzidas para as redes sociais, ou para serem apagados, como os vídeos gerados por câmeras de segurança, nosso foco aqui. No contexto do 8 de janeiro brasileiro, no entanto, esses registros ganharam estatuto de documento e de prova criminal. Afinal, são essas imagens produzidas para não serem vistas nem guardadas, a única documentação oficial sobre o acontecimento. Para além de sua instrumentalidade no processo em curso sobre a tentativa de golpe articulada pela extrema-direita bolsonarista, essas imagens sugerem questões importantes:

Diante dessa quantidade assombrosa de imagens (quase 800 horas de vídeo captadas por 33 câmeras), perguntamos: Quais outras histórias da arte, da arquitetura, do urbanismo, da cidade e do design essas imagens nos contam? Que tipo de arquivo nos sugerem? Que políticas da imagem e que tipos de estéticas do pós-fotográfico estão enquadradas nessas câmeras?

Domingo no Golpe (documentário)

Domingo no Golpe é um documentário “Ready Media” Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi sobre a tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023. A definição, alude a obras em que os autores mais chamam a atenção para o que já existe, do que criam algo totalmente novo. É o caso deste documentário, que foi inteiramente produzido com as imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto.

Essas imagens foram disponibilizadas à imprensa pelo GSI (Gabinete de Segurança Institucional), por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) em abril de 2023. A narração foi criada a partir de trechos do relatório final da CPMI dos Atos de 8 de Janeiro, divulgado em 17 de outubro de 2023, lido pela senadora Eliziane Gama (relatora).

Domingo no Golpe aborda um 8 de janeiro que não começou há um ano e, todavia, não terminou, segundo o pronunciamento da relatora, que funciona como um fio condutor da narrativa. O documentário teve uma um corte inicial previamente disponibilizado ao público no dia 08 de janeiro de 2024, pela internet.

Conceitos e linguagens

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

A ideia de se fazer o lançamento definitivo por ocasião da data em que se completam 60 anos do Golpe de 1964, reflete sobre as continuidades entre esse e outros acontecimentos similares recentes. A sugestão de que a história dos atentados contra a transformação social são um contínuo na história brasileira, em atos nem sempre democráticos, por parte das elites brasileiras, está em uma das falas de Darcy Ribeiro, uma das vozes que conduzem o documentário.

Um outro aspecto comentado pelo documentário Domingo no Golpe é a configuração do traçado previsto para a cidade de Brasília, refletindo os poderes constituídos. Na fala de Lúcio Costa, também presente do documentário, a idéia foi “criar uma praça triangular equilátera, porque os três poderes teoricamente têm o mesmo peso”. O que vemos, no entanto, é uma clara intenção de ataque não apenas aos poderes representados, mas também aos símbolos da cultura republicana e democrática.

Assista outros trialers

Lucas Bambozzi comenta que o trabalho é uma busca semiótica por momentos representativos do que foi o Domingo de 08 de janeiro de 2023:

“Em operações manuais de avanço, aceleração e pausa, identificamos pontos e momentos precisos, em uma lógica estética que reflete articulações de imagens conhecidas nos anos 1980 como scratch video, entre a velocidade voraz, o slow motion e o still, numa busca por personagens, ações e expressões faciais que refletem cinismos, ignorâncias, ingenuidade e violências, como momentos significantes em cada clip das 33 câmeras a que tivemos acesso”, diz Lucas.

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

Já Giselle Beiguelman destaca que o documentário revela não só pontos de vista inusitados sobre Brasília, dados pelas câmeras de segurança, mas também a fragilidade da noção de espaço público, de bem comum entre nós.

“A capital que se vê no documentário não é a da imponência modernista das construções de Niemeyer e da utopia do urbanismo de Lucio Costa, mas um território de agressões ao patrimônio público. São ataques indiscriminados e violentos contra a arquitetura, as obras e todo e qualquer objeto. Há uma espécie de frenesi da destruição que implicitamente supõe que o que é público é de ‘ninguém’ e, sendo assim, você pode ir lá e fazer o que você quiser. Mas o espaço público é exatamente o contrário disso. É exatamente por se público que é negociado, princípio que é um dos pilares da compreensão sobre o que é a democracia”, afirma Giselle.

Lucas e Giselle destacam ainda que o documentário apresenta também uma sui generis arqueologia das câmeras de vigilância, já que as quase 800 horas de vídeo que registraram o ataque ao Palácio do Planalto em 8 de janeiro, a partir de 33 diferentes pontos, são de épocas, sistemas e qualidades muito diferentes entre si. Preservar e dar nitidez a essa variedade de linguagens de registros levou os artistas a optarem por não homogeneizar, via tratamento de imagens, seu colorido, nem mascarar seus intermitentes “bugs”, ruídos e distorções.

O título do documentário nasceu do inusitado das imagens, em que os golpistas aparecem com cadeiras de praia, camisetas da CBF e uma parafernália de símbolos pátrios revisitados, num clima de domingão, no qual o grande programa não era ir ao parque, mas ao golpe. Rever essas imagens implica pensar nos vários ataques à democracia brasileira e as formas de resistência a esse atentados.

Para imagens de divulgação e contatos para exibição, escreva para: acervosdigitais [at] usp [dot] br

REPOSITÓRIOS DIGITAIS 2.0: DOS OBJETOS DIGITAIS ESTÁTICOS AOS ECOSSISTEMAS DE INFORMAÇÕES DINÂMICAS

Neste seminário de pesquisa, ministrado pelo Prof. Dr. Dalton Lopes Martins, Pesquisador Associado do nosso Projeto Temático, argumenta-se que o Arquivo Digital não deve mais ser pensado apenas como um lugar para depositar arquivos estáveis de mídia digitalizada, mas sim um sistema de informação que funcione como um mapa de redes dinâmicas de circulação da informação do patrimônio cultural.

Para tanto, Dalton Martins propõe um sistema de informação que abra espaço para a curadoria por múltiplas vozes, diferentes visões e proponha ao museu uma posição de articulador de redes e visões a respeito do patrimônio cultural. Um sistema de informação que facilite a sistematização de diferentes vozes, divergência, debate e facilite o uso de algoritmos de inteligência artificial generativa para dar apoio a novas dinâmicas de produção de informação e metodologias de documentação de objetos.

Inteligência distribuída e catalogação como crowdsourcing

Giselle Beiguelman

Arquivos digitais e Inteligências Artificiais possibilitam novas formas de organização dinâmica dos conteúdos culturais, abrindo possibilidades inéditas para o conhecimento crítico e colaborativo. Essas mesmas dinâmicas implicam desafios significativos, face à obsolescência programada e ao colonialismo dos dados. Nesse contexto, fabular arquivos mutantes, capazes de dar vazão a outras histórias das artes e das sociedades, implica pensar em modos de fomentar usos críticos das redes e outras culturas da memória. Iniciativas de catalogação baseadas em sistemas de crowdsourcing são um ponto de inflexão importante desse debate

Inciativas de catalogação distribuída em sistemas de crowd-sourcing ganham peso na reflexão sobre novos modelos de arquivamento. As iniciativas GLAM (Galleries Libraries Archives and Museums) são um ponto de partida para essa discussão. Elas compreendem as parcerias e atividades realizadas pela Wikipédia com instituições culturais, a fim de levar o acervo dessas instituições ao público online, assegurando que as informações relacionadas a esses acervos (os metadados) estejam devidamente estruturados.

Um dos casos mais bem sucedidos é o do Museu Paulista da da USP (MP-USP) que resultou em: Disponibilização das imagens relacionadas ao acervo do museu (+ de 30 mil até o momento); 6 mil metadados estruturados referentes às imagens e outros itens do acervo; Melhoria de 2.500 verbetes na Wikipédia (Maratonas de edição), relacionados à mulher na História da Arte, à figuração dos indígenas no Museu, e à problematização das lutas pela Independência do Brasil.

Digno de nota, nessa direção, é o projeto Arquigrafia, da FAUD-USP. Criado em 2008 e online desde 2011, o Arquigrafia é um ambiente colaborativo temático com cerca de 10 mil imagens de arquiteturas e espaços urbanos, disponibilizadas para livre acesso, com direitos autorais protegidos por licenças Creative Commons. Em parceria com a Seção de Material Iconográfico da Biblioteca da FAUUSP, sua equipe desenvolve um intenso trabalho de conservação de material fotográfico original, digitalização e difusão web que faculta o acesso público e gratuito a um dos mais relevantes acervos de imagens fotográficas de arquitetura e urbanismo.

Outra iniciativa que vale menção aqui, em sua capacidade de trabalhar o potencial da inteligência distribuída das redes é o projeto By the People, da Library of Congress, dos EUA, um projeto de crow-sourcing que convida o público a transcrever, revisar e taguear páginas digitalizadas das coleções da Biblioteca. As transcrições criadas pelos voluntários melhoram a pesquisa, a legibilidade e o acesso a documentos manuscritos e digitados para todos, incluindo pessoas com deficiência visual.

Todas as transcrições são feitas e revisadas por voluntários antes de serem integradas ao site da Biblioteca. “By the People” é alimentado pela plataforma de transcrição colaborativa de código aberto Concordia, desenvolvida pela Biblioteca do Congresso. Inciado em 2018, o nome desse projeto vem da frase de encerramento do Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln, que afirma: “…governo do povo, pelo povo e para o povo, não perecerá da terra.” Ao delegar a melhoria das coleções digitais da Biblioteca do Congresso aos seus consulentes, a instituição segue um movimento que a Biblioteca Pública de Nova York vem realizando desdes 2012, como o Space/Time Directory.

O projeto, que recebeu uma bolsa de 380 mil dólares, foi anunciado como um “Google Maps do passado”, com uma função de controle deslizante de tempo construída ao juntar e sobrepor mapas históricos. Um recurso semelhante a “Foursquare ou Yelp do passado”, onde qualquer local histórico pode ser encontrado em qualquer ponto no tempo. Um catálogo histórico dos materiais culturais da cidade, como fotografias, artigos de jornal, diretórios de empresas, referências literárias e dados censitários.

Uma “máquina do tempo em forma de código” – uma base de código que outras cidades podem emular para criar interfaces semelhantes. Está fora do ar, comprometido pela obsolescência programada. Porém seu código continua aberto no Git Hub. A disponibilização das formas de fazer é fundamental para pensar no fomento à Inteligência distribuída.

Acervos em movimento: Documentação social, IA e Curadoria colaborativa

Catalogação é uma prática essencial para lidar com a documentação social. Com o avanço das tecnologias digitais, a catalogação pode ser aprimorada e diversificada, permitindo a participação ativa de pessoas de diferentes perfis, o uso de inteligência artificial e a colaboração entre diferentes instituições

Partial map of the Internet based on the January 15, 2005
Partial map of the Internet based on the January 15, 2005. Wikimedia

A documentação registrada em arquivos oficiais geralmente é produzida por instituições governamentais, empresas ou outras entidades com poder institucional e autoridade para documentar eventos e processos importantes. Esse tipo de documentação é geralmente formal, focado em questões legais, e muitas vezes limitado ao que é considerado relevante para essas instituições. [1]

Já a documentação social é produzida por indivíduos e comunidades em seu cotidiano, muitas vezes sem uma preocupação formal com a documentação e pode ser encontrada em fotos, vídeos, postagens em redes sociais e outros materiais criados e compartilhados . Esse tipo de documentação fornece um registro mais diverso, incluindo perspectivas e vozes que podem ser ausentes na documentação oficial. A documentação social também pode ser usada para desafiar ou complementar a documentação oficial e fornecer múltiplas visões de um evento ou processo.

Casos de estudo e possibilidades

Um exemplo interessante de catalogação via crowdsourcing é o projeto “By the People” da Biblioteca do Congresso dos EUA. Esse projeto permite que voluntários ajudem a transcrever e marcar manuscritos históricos, tornando esses documentos mais acessíveis, plurais e pesquisáveis.

Outro exemplo de catalogação inovadora é a iniciativa do Metropolitan Museum de Nova York, em parceria com a Microsoft e o MIT, que promoveu um hackathon para desenvolver ferramentas de acesso e uso de sua coleção de arte. Esse evento resultou em soluções criativas e tecnologicamente avançadas para a catalogação e visualização de obras de arte.

O uso de inteligência artificial também vem sendo cada vez mais explorado na catalogação de obras de arte, como é o caso do Harvard AI Explorer. Usando inteligência artificial, os Museus de Arte de Harvard coletaram 39.388.699 descrições, cobrindo 266.309 imagens de obras de arte. As descrições variam do reconhecimento de objetos à análises faciais para prever gênero, idade e emoções nas imagens. Esses dados revelam como as IAs interpretam pinturas, fotografias e esculturas, possibilitando outras formas de compreensão dessas obras.

Outra possibilidade interessante que aventamos no nosso grupo, na direção de expandir a catalogação das obras, é a inclusão de dados do Google Maps, que nos permitiriam, por exemplo, identificar quantas vezes uma obra foi fotografada por visitantes e em quais locais. Essas informações geradas coletivamente podem voltar para a plataforma de catalogação, enriquecendo ainda mais a documentação social.

A inserção de dados na Wikipédia também pode ser uma estratégia eficaz para a catalogação, pois permite, a partir dos verbetes,  estabelecer relações com arquivos análogos através de APIs. No entanto, é importante ressaltar a escassez de informação sobre a Arte Digital brasileira na Wikipedia, o que torna ainda mais relevante a inclusão de dados nessa plataforma para operacionalizar o acesso a essas informações.

Além disso, pensamos que eventos imersivos em coleções de arte, a partir de listas curatoriais feitas pelos museus, podem ser uma oportunidade para a catalogação de obras e a contextualização de sua história e trajetória. Contudo, é necessário criar um ecossistema capaz de equacionar um gradiente de propostas curatoriais, que se abra para outras ramificações não previstas.

Por fim, vale mencionar, como estratégia de catalogação otimizada para a Internet, o site do MoMA, que é uma referência em catalogação de obras de arte e oferece uma ampla variedade de informações e recursos para pesquisadores, curadores e interessados em geral. Através do seu site, é possível acessar informações detalhadas sobre a coleção, exposições passadas e presentes, além de recursos educacionais e ferramentas de pesquisa.

A gestão de acervos aprimorada pelas IAs Generativas

A evolução da tecnologia e da inteligência artificial tem trazido uma nova perspectiva para a gestão de acervos culturais. Instituições como o Cleveland Art Museum e o Cooper Hewitt estão utilizando ferramentas inovadoras para agregar mais informações e contextos às obras presentes em seus acervos.

O Cleveland Art Museum, por exemplo, possui uma busca integrada ao Bing que carrega informações das redes sociais e outras fontes aos objetos do acervo. Já o Cooper Hewitt permite a navegação por cores no acervo, além de cruzar informações, como data de aquisição para gerar curadorias de seu acervo.

Outra possibilidade que antevemos é a inclusão de informações da Wikipédia/Wikimedia nas obras e na biografia dos artistas, a fim de enriquecer a contextualização e fornecer mais referências aos interessados. Seria importante também, ligar as obras aos discursos críticos sobre elas, disponíveis online, a partir do Google Scholar e Academia.edu. Uma estratégia desse tipo foi usada no site do VideoBrasil, ainda que a partir de buscas internas no seu acervo, mas com base em uma curadoria de tags inovadora.

É importante questionarmos como incluir discursos críticos não canônicos e fugir do formalismo institucional, incorporando leituras das exeposições feitas por profissionais da limpeza e seguranças.

Um grande desafio, que gera muita dúvidas diz respeito sobre como criar um ambiente que preserve o rigor contextual e, ao mesmo tempo, a anarquia dos dados. Outro desafio a enfrentar em um modelo de gestão baseado em IAs é evitar o darwinismo dos dados, que tende a reforçar condicionantes de poder.

A gestão de acervos baseadas em IAs generativas é uma tendência que poderá transformar os processos de documentação e preservação da cultura. Ainda há muito a explorar, mas é inegável que as possibilidades de enriquecimento e democratização do acesso ao patrimônio cultural são imensas.

Curadoria colaborativa e acesso à informação em plataformas online de acervos

A curadoria de acervos feita pelo público está se tornando cada vez mais viável com o acesso às plataformas on-line, que oferecem recursos avançados de visão computacional para navegação no acervo. Duas plataformas que se destacam nesse sentido são o MosAIc e o British Museum. O MosAIc oferece recursos avançados de visão computacional para navegação no acervo, permitindo que o usuário possa explorar obras de arte de uma forma mais imersiva e interativa. Já o British Museum possui uma interface de acesso ao acervo que permite diferentes navegações cruzadas via cronologia e conteúdos.

Importante ressaltar que muitos sites utilizam sistemas de indicação de obras semelhantes, seguindo um modelo pautado pelas estratégias de e-commerce, onde um produto indica outros produtos relacionados. No entanto, no campo das artes, a aproximação baseada em palavras-chave pode reforçar hegemonias correntes no campo das artes e apropriações que reforcem discursos de ódio.

Uma forma de evitar isso é criar sistemas parasitários que possam comparar diferentes perspectivas acerca dos verbetes. O Search Atlas é um exemplo disso, pois permite que o usuário possa comparar diferentes resultados de busca em diferentes plataformas, evitando assim discursos de ódio e reforçando a pluralidade de perspectivas.

Outra alternativa que nos parece mais rigorosa e promissora é a introdução de sugestões automáticas de obras pesquisadas por outras pessoas que acessaram um determinado resultado, como faz o Metropolitan Museum de Nova York, indicando um uso mais crítico e criativo das inteligências distribuídas nas redes.

Notas

[1]  Texto redigido pelo ChatGPT, elaborado a partir das notas da reunião do projeto temático Fapesp LinCar, realizada no dia 21/03/2023, com a presença de: Ana Magalhães, Bruno Moreschi, Dalton Martins, Giselle Beiguelman, Heloisa Espada, Paula Perissinotto, Priscila Arantes, Renata Perim. Edição final: Giselle Beiguelman

Leituras relacionadas

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Webinário “Curadoria em debate: a pesquisa em museus universitários”. Disponível em: <https://sites.usp.br/ciclocuratorial/webinario-curadoria-em-debate-a-pesquisa-em-museus-universitarios/>. Acesso em: 22 mar. 2023.

 

O arquivo do futuro e o futuro do arquivo

Desafios e possibilidades dos arquivos digitais: refletindo sobre a organização dinâmica de conteúdos culturais e a intervenção editorial em sistemas de automação 

o arquivo do futuro em ilustração feita no DALLE-2

O arquivo digital não se limita a ser um espaço de armazenamento de documentos. Ele é um arquivo mutante, que não apenas guarda, mas cria arquiteturas para que o usuário possa performar e interagir com os conteúdos.[1]

O modelo de catalogação dos museus foi levado sem questionamento para o meio digital. Contudo, na internet o objeto é enrredado e conectado a outras informações, o que pode tornar difícil a sua organização em um repositório digital.

Assim, documentar hoje em dia é questionar a lógica de um repositório digital estático e pensar em ecossistemas de organização dinâmicos, com possibilidades de absorver links públicos e das redes sociais, tornando-se um lugar de encontro para pessoas e conteúdos.

Nesse sentido, o arquivo digital permite contar outras histórias da arte, além das já conhecidas. Ele pode ser um espaço de experimentação e interação com as obras, possibilitando novas interpretações e formas de apreciação. Para tanto, é preciso repensar a lógica dos repositórios digitais estáticos e investir em sistemas flexíveis.

Um arquivo dinâmico estruturado a partir das conexões com modelos de IA pode ser um ponto de partida para o modelo de plataforma que queremos desenvolver, incorporarando, por exemplo, funcionalidades presentes nos GLAMs da Wikipedia, que permitem aos usuários visualizar as conexões e apropriações que os conteúdos encontraram ao longo do tempo.

Desafios

Uma das formas de dar visualidade aos conteúdos é por meio de métodos Warburguianos, que buscam pelos elementos das imagens e exploram as suas conexões com outras obras e contextos. Algoritmos como o MosAIc podem ser utilizados para encontrar semelhanças e conexões entre imagens aparentemente desconectadas, gerando novas interpretações e possibilidades de apreciação.

No entanto, é importante lembrar que a visualidade dos conteúdos não se limita apenas à sua representação gráfica. Ela também está relacionada à forma como os conteúdos são organizados e disponibilizados para o público. Por isso, é importante investir em arquiteturas dinâmicas e flexíveis, que permitam aos usuários explorar os conteúdos de forma personalizada e adaptada às suas necessidades e desejos.

Apesar das vantagens do uso de IA para a organização de arquivos e conteúdos culturais, existem diversos desafios a serem enfrentados. Um dos principais é o “darwinismo dos dados”, que se refere ao processo de seleção e valorização dos dados que ocorre dentro dos algoritmos de IA. É preciso entender como a máquina entende e intervir editorialmente no sistema dinâmico de automação para evitar que os algoritmos reproduzam preconceitos e discriminações presentes na sociedade.

Além disso, as lógicas dos modelos proprietários de IA podem interferir nas categorias que criamos e limitar a forma como os conteúdos são organizados e disponibilizados. É importante pensar em ferramentas que possam ser implementadas para identificar dados enviesados e corrigir essas distorções.

Outro desafio é como pensar a catalogação de uma documentação por fazer. É possível pensar em um arquivo que parta da recusa do armazenamento e que privilegie a dinamicidade e a flexibilidade, mas isso significa abrir mão da conservação no processo de gestão. Esse é um princípio contestado por Hal Foster em “The Archives Without Museums“, que argumenta que é importante preservar e conservar os arquivos para garantir a continuidade histórica e a memória cultural.

Portanto, é necessário encontrar um equilíbrio entre o dinamismo e a conservação, pensando em arquiteturas flexíveis e adaptáveis que permitam a personalização da experiência do usuário, mas que também garantam a preservação e a continuidade histórica dos conteúdos. É importante investir em ferramentas que possam identificar dados enviesados e corrigir as distorções, além de intervir editorialmente no sistema de automação para evitar a reprodução de preconceitos e discriminações.

 

Notas

1 Texto redigido pelo ChatGPT a partir da síntese da Reunião do dia 27/02/2023, com a presença de Ana Gonçalves Magalhães, Dalton Martins, Eduardo Augusto Costa, Giselle Beiguelman, Heloisa Espada, Paula Perissinotto, Priscila Arantes, Renata Padilha, Renata Perim. Edição e revisão: Giselle Beiguelman.