Dinâmicas do espaço público: Terra de ninguém

por Giselle Beiguelman

Nas imagens do 8 de janeiro liberadas pelo GSI à imprensa, por ordem do STF, chama a atenção também o espírito de manada, a forma como a “irmandade” comemora a destruição do patrimônio público. A fúria, aliás, contra o patrimônio público é um traço da iconoclastia dominante nesse 8 de janeiro. Nada escapa do exército verde amarelo “cebefista”. O que isso diz sobre nossa direita e sua compreensão do espaço público como terra de ninguém? Esta foi uma pergunta que nos fizemos várias vezes ao longo da pesquisa para a realização do documentário Domingo no Golpe (2024).

A imagem da obra de Di Cavalcanti esfaqueada é uma chave para entender os acontecimentos ocorridos naquele domingo. Apesar de não ser a única desse perfil, infelizmente, ela traduz não só o aleatório da violência que testemunhamos, mas a clareza de seus alvos. Atacar as obras de arte revela o desprezo e o ódio contra a cultura. A foto desse quadro perfurado sete vezes é uma espécie de clímax de uma narrativa da extrema direita que insiste em mostrar seu desrespeito às instituições, aos seus processos e à democracia, reiterando seu manifesto interminável contra o patrimônio público e a história.

Como se sabe, essa obra de Di Cavalcanti, a tela “As Mulatas”, de 1962, foi uma das vítimas, e não a única, da turba que invadiu as sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do governo federal. Fotos e vídeos, muitos dos quais produzidos e divulgados pelos próprios golpistas, são eloquentes sobre o rastro de destruição deixado, semelhante ao da violência das guerras.

A avalanche imagética que se seguiu na televisão e na internet chocou a todos e recordou, para vários, duas pinturas de Oscar Niemeyer, conhecidas como “Ruínas de Brasília”. Feitas em 1964, em Paris, essas duas pinturas mostravam as célebres colunas do Palácio da Alvorada, de sua autoria, tombadas sobre um fundo lúgubre e quase sem luz.

Expressavam sua reação ao golpe que transformou a capital em sede da ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Ruínas, no entanto, como aprendemos com o pensador alemão Walter Benjamin, guardam consigo uma ponta de futuro, porque presentificam o vivo na morte. São, por isso, um fragmento da história, expandindo a memória num arco temporal que abrange seu antes e seu depois.

Multidão verde-amarela cebefista

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

Por esse motivo, outro pensador alemão, Andreas Huyssen, diz que o século 20 não foi capaz de criar ruínas, apenas escombros. As imagens das cidades devastadas pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial o convenciam disso. Se as ruínas expressam a “saudade de um futuro alternativo”, como identificar ruínas naquelas paisagens abortadas do tempo de forma tão cruel? A mesma pergunta cabe diante da agressão ao patrimônio público feita pelos “verdeamarelistas” que invadiram a praça dos Três Poderes.

Não que alguém esperasse da parte desses golpistas algum tipo de empatia com a arte, o patrimônio ou as instituições. Afinal, eles foram a Brasília em nome da continuidade de um projeto de destruição que atingiu as mais variadas áreas. 

As imagens que vimos do ataque de 8 de janeiro têm grau de violência equivalente às dos enterros em massa na pandemia, às dos incêndios de florestas, assim como o desmonte da cultura e dos órgãos do patrimônio histórico promovidos ao longo do governo Bolsonaro.

As imagens desse fatídico dia nos chocaram não porque seríamos ingênuos sobre o perfil dos golpistas, mas porque enunciam visualmente aquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de “estado de exceção como paradigma de governo”. Um estado de torpor e violência institucional, cuja eficiência depende não da supressão da lei, mas da invenção de uma lacuna fictícia que, em caso extremo, cria uma área em que essa aplicação pode ser suspensa, ainda que permaneça em vigor.

Essa fratura do direito é fundamental para entender o delírio dos golpistas em Brasília e de sua apropriação destrutiva do patrimônio coletivo. Sua truculência mostra que a discussão sobre o direito à memória é indissociável da do direito ao espaço público, entendido como espaço de conflito e negociação, socialmente produzido. Essa noção se opõe radicalmente à compreensão equivocada e criminosa, patente na invasão da praça dos Três Poderes.

Para os golpistas que violentaram as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, o espaço público é entendido como terra de ninguém ou propriedade de cada um. Isso implica ignorar o fundamento das instituições como mediadoras das instâncias coletivas. Além do mais, expressa a incapacidade de entender que discutir o bem público é falar do bem comum e de como o compartilhar.

É fato que grande parte do patrimônio atacado é modernista e que o tema é prenhe de contradições. Essas contradições vão da ideia de Brasília como ocupação do “puro vazio” até as diversas histórias da arte que vem problematizando as narrativas do modernismo brasileiro. Contudo, a invasão golpista não tem qualquer traço crítico ou foco particular sobre essas questões. Tem só ódio à cultura.

Como foi fartamente noticiado e visto nas redes sociais, e particularmente nas imagens das câmeras de vigilância do Palácio do Planalto, os ataques miraram tudo o que viam pela frente. Foi uma ação no estilo Blitzkrieg, ou guerra-relâmpago, que, como tal, busca o maior saldo possível de destruição, pelo efeito surpresa, rapidez e brutalidade do ataque. Como tanques alucinados, a turba foi ao confronto direto com todas as instâncias concretas da arte, da história e especialmente dos lugares de exercício institucional da democracia.

Os prejuízos dos ataques, dadas as suas dimensões, não foram totalmente contabilizados, mas incluem obras de diferentes perfis e quilates, que impactaram a arquitetura, o mobiliário e os acervos artísticos dessas instituições. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, ainda não sabe se todas as obras poderão ser recuperadas, mas aventa a construção de um memorial da democracia com as obras atacadas. De que forma elas serão apresentadas, ainda é cedo para saber. 

Contudo, é inegável que essas obras, em grande parte expressão da herança moderna que o poder forjou sobre si mesmo, ganharam outras dimensões desde o oito de janeiro. Essas dimensões são políticas e estéticas. Remetem, por isso, a pensar em como fazê-las contar narrativas dissidentes das oficiais e sobre os que tentaram silenciar a democracia em nome do ódio. Talvez isso seja a chave para pensar as imagens descartáveis das câmeras como arquivo e lugar de memória nato-digital.

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