A imagem documental da arte, da arquitetura e do design

Por Ana Gonçalves Magalhães e Giselle Beiguelman

Imagens da pesquisa realizada para o documentário Domingo no Golpe (2024)

A imagem documental de arquitetura, assim como a do design, dominante nos arquivos e museus especializados, não mostra os prédios ocupados, nem os objetos em uso. No máximo, no que tange à arquitetura, insere alguém como medida da escala da construção. No que diz respeito ao design, um tanto quanto paradoxalmente, os objetos aparecem isolados, como entes em si mesmo.

O mesmo ocorre com as obras de arte, sejam elas pintura, escultura, fotografia, instalações e objetos site-specific de todos os tipos, ou obras de arte digitais. Não temos imagens mentais de edifícios de uso público modernos, vistas a partir do seu interior, tomados por multidões, como as que aprecem no documentário Domingo no Golpe, feito com as imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto liberadas à imprensa pelo GSI, por ordem do STF.

Talvez nossas imagens mentais, nessa relação multidão/ espaço moderno no Brasil, se resumam na atualidade ao prédio da Bienal e ao salão caramelo da FAUUSP. Essas poucas imagens mentais, no entanto, remetem a um perfil de movimentos sociais mais à esquerda e não de massas de pessoas de direita.

Não temos um olhar educado também para imaginar os espaços modernos, especialmente os de Brasília, sucateados pelas diversas estéticas da burocracia, como as divisórias bege, as tiras de durex colorido cortando os vidros, e a imensa quantidade de catracas eletrônicas, detectores de metal, monitores baratos, cordas, raio-x etc. Elas são hoje preponderantes nas imagens, demolindo os princípios de “palacete de vidro” de Lucio Costa, com todos os conceitos aí implícitos, e enchendo o espaço de objetos de um design anódino e agressivo.

Patrimônio em disputa e sob ataque

A decoração desses espaços também foi se desvirtuando ao longo da história de uso desses espaços. No caso das obras de arte que decoram há mais de 50 anos os Palácios do Planalto e da Alvorada (sede e residência da presidência da República, respectivamente), destaca-se um decreto lei do Presidente Luís Inácio Lula da Silva de 2009, que instituiu uma comissão de curadoria para ambientação dos palácios do governo.

O segundo governo Lula tratou de legitimar o que vinha sendo construído desde o processo de redemocratização do Brasil, com a nova constituição de 1988, em que funcionários da Superintendência do IPHAN do Distrito Federal foram destacados para cuidar da ambientação dos palácios. A institucionalização de uma curadoria para essa atividade reconhece as obras de arte ali presentes como acervo a ser cuidado.

Em 2019, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro revogou o decreto lei de instituição de uma comissão de curadoria para os palácios do governo. Tal ação foi seguida não só de comissionamentos de pinturas e esculturas para a projeção da imagem de Bolsonaro individualmente, ligada a ideias messiânicas e cristãs antidemocráticas, de qualidade mais do que duvidosa. Além disso, durante seu mandato, obras de arte que já estavam na decoração dos prédios foram negligenciadas, conforme relatos feitos à imprensa nacional logo depois da posse da nova presidência da República.

Isso não se limita aos espaços invisíveis (os subterrâneos das entradas “de serviço”), mas também está presente nos espaços de uso “nobre” (até quando manteremos essas denominações espúrias, não sabemos. Mas fato é que elas denominam não só os vídeos das câmeras de segurança, mas também, oficialmente, os locais). As cortinas rotas (a existência mesmo dessas cortinas não fere o projeto do Palácio?), os equipamentos de áudio e vídeo, desajeitadamente colocados sobre as obras artísticas, como uma tapeçaria de Burle Marx, são um indicativo que o projeto de uma “modernidade bossa nova” não resistiu ao uso dos sucessivos governos e desgovernos que ocuparam o edifício.

Estéticas da burocracia

Incrível também o luxo entremeado nos materiais, das paredes de granito preto (um tanto quanto desgastadas pelo tempo e pela falta de cuidado), os mármores brancos do piso, a madeira maciça dos móveis. Tudo emporcalhado pela estética da burocracia e a falta de cuidados mínimos com o prédio. Há ainda muitos recipientes de álcool em gel (provavelmente vazios) colados nas paredes tão ricas.

Rir ou chorar diante disso? Rir porque são heranças da presidência de Bolsonaro, o incrível ser que negou a realidade da Covid, ou chorar, pelo dano que causam aos materiais em que são fixados sabe-se lá com quê …

Entretanto, há uma história dos materiais implicada nesses processos. Diante da destruição, somos desafiados a pensar a relação com os materiais. O que nos conta uma janela quebrada sobre as minas de sílica que estão nos seus primórdios? E um mármore quebrado? Ao que se liga ? De onde veio? Qual seu território?, pergunta o pesquisador Eduardo Augusto Costa.

Contudo, como deixar de se indignar com as diversas interferências feitas ao longo do tempo, maculando a suntuosidade de um poder que carrega consigo todas as ambivalências do modernismo brasileiro que Brasília condensa: os espaços abertos, a transparência do vidro e sua total desconexão com a realidade brasileira.

As imagens de Brasília privilegiam a “casca” de seu imóveis (as fachadas), em pontos de vista que se repetem na angulação e nos detalhes. As imagens das câmeras de vigilância do Palácio do Planalto apresentam pontos inéditos, permitem percursos por dentro dos prédios, enunciam um cotidiano que sugere uma outra pedagogia do olhar sobre o poder. Os ângulos do posicionamento das câmeras fazem saltar aos olhos quinas, cantos, perspectivas oblíquas que são um quase anti-Niemeyer, numa de suas arquiteturas mais consagradas que é o Palácio do Planalto.

Dinâmicas do espaço público: Terra de ninguém

por Giselle Beiguelman

Nas imagens do 8 de janeiro liberadas pelo GSI à imprensa, por ordem do STF, chama a atenção também o espírito de manada, a forma como a “irmandade” comemora a destruição do patrimônio público. A fúria, aliás, contra o patrimônio público é um traço da iconoclastia dominante nesse 8 de janeiro. Nada escapa do exército verde amarelo “cebefista”. O que isso diz sobre nossa direita e sua compreensão do espaço público como terra de ninguém? Esta foi uma pergunta que nos fizemos várias vezes ao longo da pesquisa para a realização do documentário Domingo no Golpe (2024).

A imagem da obra de Di Cavalcanti esfaqueada é uma chave para entender os acontecimentos ocorridos naquele domingo. Apesar de não ser a única desse perfil, infelizmente, ela traduz não só o aleatório da violência que testemunhamos, mas a clareza de seus alvos. Atacar as obras de arte revela o desprezo e o ódio contra a cultura. A foto desse quadro perfurado sete vezes é uma espécie de clímax de uma narrativa da extrema direita que insiste em mostrar seu desrespeito às instituições, aos seus processos e à democracia, reiterando seu manifesto interminável contra o patrimônio público e a história.

Como se sabe, essa obra de Di Cavalcanti, a tela “As Mulatas”, de 1962, foi uma das vítimas, e não a única, da turba que invadiu as sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do governo federal. Fotos e vídeos, muitos dos quais produzidos e divulgados pelos próprios golpistas, são eloquentes sobre o rastro de destruição deixado, semelhante ao da violência das guerras.

A avalanche imagética que se seguiu na televisão e na internet chocou a todos e recordou, para vários, duas pinturas de Oscar Niemeyer, conhecidas como “Ruínas de Brasília”. Feitas em 1964, em Paris, essas duas pinturas mostravam as célebres colunas do Palácio da Alvorada, de sua autoria, tombadas sobre um fundo lúgubre e quase sem luz.

Expressavam sua reação ao golpe que transformou a capital em sede da ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Ruínas, no entanto, como aprendemos com o pensador alemão Walter Benjamin, guardam consigo uma ponta de futuro, porque presentificam o vivo na morte. São, por isso, um fragmento da história, expandindo a memória num arco temporal que abrange seu antes e seu depois.

Multidão verde-amarela cebefista

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

Por esse motivo, outro pensador alemão, Andreas Huyssen, diz que o século 20 não foi capaz de criar ruínas, apenas escombros. As imagens das cidades devastadas pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial o convenciam disso. Se as ruínas expressam a “saudade de um futuro alternativo”, como identificar ruínas naquelas paisagens abortadas do tempo de forma tão cruel? A mesma pergunta cabe diante da agressão ao patrimônio público feita pelos “verdeamarelistas” que invadiram a praça dos Três Poderes.

Não que alguém esperasse da parte desses golpistas algum tipo de empatia com a arte, o patrimônio ou as instituições. Afinal, eles foram a Brasília em nome da continuidade de um projeto de destruição que atingiu as mais variadas áreas. 

As imagens que vimos do ataque de 8 de janeiro têm grau de violência equivalente às dos enterros em massa na pandemia, às dos incêndios de florestas, assim como o desmonte da cultura e dos órgãos do patrimônio histórico promovidos ao longo do governo Bolsonaro.

As imagens desse fatídico dia nos chocaram não porque seríamos ingênuos sobre o perfil dos golpistas, mas porque enunciam visualmente aquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de “estado de exceção como paradigma de governo”. Um estado de torpor e violência institucional, cuja eficiência depende não da supressão da lei, mas da invenção de uma lacuna fictícia que, em caso extremo, cria uma área em que essa aplicação pode ser suspensa, ainda que permaneça em vigor.

Essa fratura do direito é fundamental para entender o delírio dos golpistas em Brasília e de sua apropriação destrutiva do patrimônio coletivo. Sua truculência mostra que a discussão sobre o direito à memória é indissociável da do direito ao espaço público, entendido como espaço de conflito e negociação, socialmente produzido. Essa noção se opõe radicalmente à compreensão equivocada e criminosa, patente na invasão da praça dos Três Poderes.

Para os golpistas que violentaram as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, o espaço público é entendido como terra de ninguém ou propriedade de cada um. Isso implica ignorar o fundamento das instituições como mediadoras das instâncias coletivas. Além do mais, expressa a incapacidade de entender que discutir o bem público é falar do bem comum e de como o compartilhar.

É fato que grande parte do patrimônio atacado é modernista e que o tema é prenhe de contradições. Essas contradições vão da ideia de Brasília como ocupação do “puro vazio” até as diversas histórias da arte que vem problematizando as narrativas do modernismo brasileiro. Contudo, a invasão golpista não tem qualquer traço crítico ou foco particular sobre essas questões. Tem só ódio à cultura.

Como foi fartamente noticiado e visto nas redes sociais, e particularmente nas imagens das câmeras de vigilância do Palácio do Planalto, os ataques miraram tudo o que viam pela frente. Foi uma ação no estilo Blitzkrieg, ou guerra-relâmpago, que, como tal, busca o maior saldo possível de destruição, pelo efeito surpresa, rapidez e brutalidade do ataque. Como tanques alucinados, a turba foi ao confronto direto com todas as instâncias concretas da arte, da história e especialmente dos lugares de exercício institucional da democracia.

Os prejuízos dos ataques, dadas as suas dimensões, não foram totalmente contabilizados, mas incluem obras de diferentes perfis e quilates, que impactaram a arquitetura, o mobiliário e os acervos artísticos dessas instituições. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, ainda não sabe se todas as obras poderão ser recuperadas, mas aventa a construção de um memorial da democracia com as obras atacadas. De que forma elas serão apresentadas, ainda é cedo para saber. 

Contudo, é inegável que essas obras, em grande parte expressão da herança moderna que o poder forjou sobre si mesmo, ganharam outras dimensões desde o oito de janeiro. Essas dimensões são políticas e estéticas. Remetem, por isso, a pensar em como fazê-las contar narrativas dissidentes das oficiais e sobre os que tentaram silenciar a democracia em nome do ódio. Talvez isso seja a chave para pensar as imagens descartáveis das câmeras como arquivo e lugar de memória nato-digital.

Estéticas da Vigilância

As imagens acima foram editadas a partir dos arquivos das câmeras de segurança do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República) liberadas à imprensa por ordem do STF. Elas integram a pesquisa feita para o documentário Domingo no Golpe (2024). Há implícita nessas gravações uma história das estéticas da vigilância e uma arqueologia das câmeras de segurança.

Das câmeras trôpegas PZT (Pan, Zoom, Tilt), e que poeticamente tremem no vento e borram as imagens na chuva, às lentes olho de peixe, que captam sons e criam uma realidade paralela. Algumas, como as do Salão Nobre e da área externa do Palácio, são tão antigas que parecem um filme expressionista alemão. Nesse tipo de câmera, são comuns os glitches pixelizados quando a câmera corre, de um ponto a outro, deixando um rastro da materialidade das imagens digitais.

Giselle Beiguelman

Domingo no Golpe (documentário)

Domingo no Golpe é um documentário “Ready Media” Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi sobre a tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023. A definição, alude a obras em que os autores mais chamam a atenção para o que já existe, do que criam algo totalmente novo. É o caso deste documentário, que foi inteiramente produzido com as imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto.

Essas imagens foram disponibilizadas à imprensa pelo GSI (Gabinete de Segurança Institucional), por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) em abril de 2023. A narração foi criada a partir de trechos do relatório final da CPMI dos Atos de 8 de Janeiro, divulgado em 17 de outubro de 2023, lido pela senadora Eliziane Gama (relatora).

Domingo no Golpe aborda um 8 de janeiro que não começou há um ano e, todavia, não terminou, segundo o pronunciamento da relatora, que funciona como um fio condutor da narrativa. O documentário teve uma um corte inicial previamente disponibilizado ao público no dia 08 de janeiro de 2024, pela internet.

Conceitos e linguagens

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

A ideia de se fazer o lançamento definitivo por ocasião da data em que se completam 60 anos do Golpe de 1964, reflete sobre as continuidades entre esse e outros acontecimentos similares recentes. A sugestão de que a história dos atentados contra a transformação social são um contínuo na história brasileira, em atos nem sempre democráticos, por parte das elites brasileiras, está em uma das falas de Darcy Ribeiro, uma das vozes que conduzem o documentário.

Um outro aspecto comentado pelo documentário Domingo no Golpe é a configuração do traçado previsto para a cidade de Brasília, refletindo os poderes constituídos. Na fala de Lúcio Costa, também presente do documentário, a idéia foi “criar uma praça triangular equilátera, porque os três poderes teoricamente têm o mesmo peso”. O que vemos, no entanto, é uma clara intenção de ataque não apenas aos poderes representados, mas também aos símbolos da cultura republicana e democrática.

Assista outros trialers

Lucas Bambozzi comenta que o trabalho é uma busca semiótica por momentos representativos do que foi o Domingo de 08 de janeiro de 2023:

“Em operações manuais de avanço, aceleração e pausa, identificamos pontos e momentos precisos, em uma lógica estética que reflete articulações de imagens conhecidas nos anos 1980 como scratch video, entre a velocidade voraz, o slow motion e o still, numa busca por personagens, ações e expressões faciais que refletem cinismos, ignorâncias, ingenuidade e violências, como momentos significantes em cada clip das 33 câmeras a que tivemos acesso”, diz Lucas.

Stills de Domingo no Golpe. Imagens dos vídeos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto registradas pelas câmeras de vigilância do GSI e disponibilizadas à impresa por ordem do STF.

Já Giselle Beiguelman destaca que o documentário revela não só pontos de vista inusitados sobre Brasília, dados pelas câmeras de segurança, mas também a fragilidade da noção de espaço público, de bem comum entre nós.

“A capital que se vê no documentário não é a da imponência modernista das construções de Niemeyer e da utopia do urbanismo de Lucio Costa, mas um território de agressões ao patrimônio público. São ataques indiscriminados e violentos contra a arquitetura, as obras e todo e qualquer objeto. Há uma espécie de frenesi da destruição que implicitamente supõe que o que é público é de ‘ninguém’ e, sendo assim, você pode ir lá e fazer o que você quiser. Mas o espaço público é exatamente o contrário disso. É exatamente por se público que é negociado, princípio que é um dos pilares da compreensão sobre o que é a democracia”, afirma Giselle.

Lucas e Giselle destacam ainda que o documentário apresenta também uma sui generis arqueologia das câmeras de vigilância, já que as quase 800 horas de vídeo que registraram o ataque ao Palácio do Planalto em 8 de janeiro, a partir de 33 diferentes pontos, são de épocas, sistemas e qualidades muito diferentes entre si. Preservar e dar nitidez a essa variedade de linguagens de registros levou os artistas a optarem por não homogeneizar, via tratamento de imagens, seu colorido, nem mascarar seus intermitentes “bugs”, ruídos e distorções.

O título do documentário nasceu do inusitado das imagens, em que os golpistas aparecem com cadeiras de praia, camisetas da CBF e uma parafernália de símbolos pátrios revisitados, num clima de domingão, no qual o grande programa não era ir ao parque, mas ao golpe. Rever essas imagens implica pensar nos vários ataques à democracia brasileira e as formas de resistência a esse atentados.

Para imagens de divulgação e contatos para exibição, escreva para: acervosdigitais [at] usp [dot] br

Arquivos digitais: entre a inteligência distribuída e o colonialismo dos dados

Giselle Beiguelman

Arquivos digitais e Inteligências Artificiais possibilitam novas formas de organização dinâmica dos conteúdos culturais, abrindo possibilidades inéditas para o conhecimento crítico e colaborativo. Essas mesmas dinâmicas implicam desafios significativos, face à obsolescência programada e ao colonialismo dos dados. Nesse contexto, fabular arquivos mutantes, capazes de dar vazão a outras histórias das artes e das sociedades, implica pensar em modos de fomentar usos críticos das redes e outras culturas da memória.

[Conferência de abertura do 1o Seminário Sesi Lab. Brasília, 9 de novembro de 2023]

Arquivos digitais, arquivos mutantes

O avanço das tecnologias digitais têm proporcionado novas formas de arquivar e preservar obras de arte. No contexto contemporâneo, apresentam-se diferentes perfis de arquivamento digital. Grosso modo, podem-se diferenciar dois tipos de arquivos digitais: arquivos nativamente digitais e arquivos digitalizados. Arquivos nativamente digitais são aqueles que foram criados e existem em formato eletrônico desde sua concepção inicial. Esses arquivos são produzidos por meio de processos digitais e não têm uma contraparte física correspondente. São exemplos de arquivos nativamente digitais os documentos de texto, planilhas eletrônicas, apresentações de slides, imagens digitais, vídeos, áudios, entre outros. Esses arquivos são criados diretamente em formato eletrônico, sem a necessidade de serem convertidos ou digitalizados a partir de uma versão física.

Por outro lado, os arquivos digitalizados referem-se a documentos ou objetos que foram convertidos de seu formato físico original para um formato eletrônico. Nesse processo, utiliza-se um scanner, câmera ou outro dispositivo de digitalização para capturar uma imagem ou uma representação eletrônica da versão física do documento ou objeto. Os arquivos digitalizados são, essencialmente, cópias eletrônicas de documentos ou objetos físicos, podendo inclusive distorcer as informações principais do original (quanto a cores e escala, por exemplo). 

Nesse sentido, é fundamental entendermos que ao falarmos de arquivos digitais (sejam eles nativos ou digitais), estamos nos referindo a arquivos mutantes. Isso diz respeito não apenas à descartabilidade que os processos de obsolêscencia implicam e à flexibilidade de manipulação dos arquivos digitais.

Falar em arquivos mutantes, no entanto, implica entender o arquivo para além de um espaço de armazenamento de documentos digitais, que não apenas guarda, mas cria arquiteturas para que o usuário possa performar e interagir com os conteúdos. Como deixa claro o Professor Dalton Martins, o modelo de catalogação dos museus foi levado sem questionamento para o meio digital. Isso é um equívoco, pois o objeto digital contem camadas de informações variadas, para além do assunto a que se refere, que se expandem no meio online, enredando-se aos conteúdos que se agregam por meio de comentários, links públicos e programas de buscas, entre outros.

Assim, documentar, hoje em dia, é questionar a lógica de um repositório digital estático e pensar em ecossistemas de organização dinâmicos que permitam, por exemplo, contar outras histórias da arte e da cultura, incorporando criticamente o manancial de conteúdos que são disponibilizados diariamente na internet.

A Wikipedia é um bom ponto de partida para abordarmos os usos críticos das redes. Para tanto, parto do caso de um Museu brasileiro para introduzir a questão. Mais especificamente, falo dos GLAMs da Wikipédia e do caso do Museu Paulista da USP.

Inteligência distribuída

Crowd Sourcing

As iniciativas GLAM (Galleries Libraries Archives and Museums), compreendem as parcerias e atividades realizadas pela Wikipédia com instituições culturais, a fim de levar o acervo dessas instituições ao público online, assegurando que as informações relacionadas a esses acervos (os metadados) estejam devidamente estruturados. 

No caso do MP-USP, isso implicou: Disponibilização das imagens relacionadas ao acervo do museu (+ de 30 mil até o momento); 6 mil metadados estruturados referentes às imagens e outros itens do acervo; Melhoria de 2.500 verbetes na Wikipédia (Maratonas de edição), relacionados à mulher na História da Arte, à figuração dos indígenas no Museu, e à problematização das lutas pela Independência do  Brasil (ALVES, 2020 p. 4) .

Outra iniciativa que vale menção aqui, em sua capacidade de trabalhar o potencial da inteligência distribuída das redes é o projeto By the People, da Library of Congress, dos EUA, um projeto de crow-sourcing que convida o público a transcrever, revisar e taguear páginas digitalizadas das coleções da Biblioteca. As transcrições criadas pelos voluntários melhoram a pesquisa, a legibilidade e o acesso a documentos manuscritos e digitados para todos, incluindo pessoas com deficiência visual.

Todas as transcrições são feitas e revisadas por voluntários antes de serem integradas ao site da Biblioteca. “By the People” é alimentado pela plataforma de transcrição colaborativa de código aberto Concordia, desenvolvida pela Biblioteca do Congresso. Inciado em 2018, o nome desse projeto vem da frase de encerramento do Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln, que afirma: “…governo do povo, pelo povo e para o povo, não perecerá da terra.” Ao delegar a melhoria das coleções digitais da Biblioteca do Congresso aos seus consulentes, a instituição segue um movimento que a Biblioteca Pública de Nova York vem realizando desdes 2012, como o Space/Time Directory.

O projeto, que recebeu uma bolsa de 380 mil dólares, foi anunciado como um “Google Maps do passado”, com uma função de controle deslizante de tempo construída ao juntar e sobrepor mapas históricos. Um recurso semelhante a “Foursquare ou Yelp do passado”, onde qualquer local histórico pode ser encontrado em qualquer ponto no tempo. Um catálogo histórico dos materiais culturais da cidade, como fotografias, artigos de jornal, diretórios de empresas, referências literárias e dados censitários. 

Uma “máquina do tempo em forma de código” – uma base de código que outras cidades podem emular para criar interfaces semelhantes. Está fora do ar, comprometido pela obsolescência programada. Porém seu código continua aberto no Git Hub. A disponibilização das formas de fazer é fundamental para pensar no fomento à Inteligência distribuída.

Salvos pela cópia

É fato que a obsolescência  programada é um dos desafios principais do armazenamento, conservação e publicação dos arquivos digitais. Contudo é preciso levar em consideração que a digitalização pode, tambem salvar o documento perdido pela sua cópia. Há obras físicas que, paradoxalmente, só tem sua existência preservada pelo processo de digitalização. 

Um caso interessante nessa perspectiva, é o da restauração da obra “Formas Únicas da Continuidade no Espaço”, de Umberto Boccioni, que é considerada uma peça seminal da coleção do MAC-USP e possui importância internacional. Essa escultura marca o início do movimento futurista italiano no início do século XX e exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da arte moderna posterior.

“O original em gesso, que hoje pertence ao acervo do MAC, é uma das 11 esculturas que Boccioni expôs na mostra de escultura futurista que fez em Paris, em 1913”, explica Ana Gonçalves Magalhães, atual diretora do Museu e pesquisadora à frente da pesquisa sobre a obra. “Com a morte prematura de Boccioni, em 1916, o destino de suas esculturas sofreu reveses, o que fez com que apenas três dos gessos que ele havia apresentado na exposição de 1913 sobrevivessem.”

A famosa figura abstrata, que se destaca pela nítida impressão de caminhar e se movimentar no espaço, acabou se popularizando através de uma série de tiragens em bronze realizadas, inicialmente, por encomenda do líder do movimento futurista, e amigo do artista, Filippo Tommaso Marinetti, nos anos 1930. “O fato de as tiragens em bronze terem ganhado coleções de museus no mundo inteiro, dentre os quais o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa, fez com que a historiografia da arte moderna desconsiderasse a importância do gesso para Boccioni na veiculação de seu conceito de escultura futurista” (MAGALHÃES; MCKEVER, 2022). 

Com o apoio da Prefeitura de Milão e do Museo Del Novecento no exterior, e da atuação do FAB LAB Livre SP no município de São Paulo, além das parcerias com o Instituto de Física e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, foi possível construir um molde 3D da escultura de Boccioni, permitindo que a obra seja preservada e difundida. O processo, que envolveu tecnologias de escaneamento, radiografia e análises de imageamento, consideradas não destrutivas, indica assim outras nuances na discussão de acervos digitais. 

Mesmo não sendo nativamente digital, a construção desse novo molde funciona como um parâmetro relevante para refletir sobre o arquivamento digital de obras não nativamente digitais, mas que só podem circular atualmente devido à existência de sua cópia digital. É um equívoco, no entanto, identificar o arquivo 3D como a própria obra, pois ele é apenas uma representação virtual. Nesse sentido, abrem-se outras questões relacionadas aos arquivos digitais, como saber se esse arquivo pode ser disponibilizado, e se ele representa a obra em si ou se é considerado outra obra.

Afinal, as manipulações podem ser tamanhas que poderemos ter interferências tão grandes e impactantes a cada manipulação dos arquivos que os originais se tornarão irreconhecíveis.

Olhares maquínicos

Rijksmuseum (raiksmuseum)

Algoritmo MosAIc – desenvolvido pelo MIT e Microsoft – usa inteligência artificial para buscar semelhanças entre obras de arte em diferentes mídias e de diferentes origens culturais, identificando conexões visuais ao longo da história.

Metropolitan

Depois de lançar sua iniciativa de acesso aberto em 2017, o museu desenvolveu uma API permitindo que outra instituição integre a coleção do Met em seu site. A primeira parceria foi com o Google Arts & Culture. As obras inseridas na API atualizam, ao mesmo tempo, o site do museu e o GA&C.

Desenvolvimento do Art Explorer que usa a Pesquisa Cognitiva da Microsoft para enriquecer a experiência do usuário com as obras de arte de acesso aberto do The Met, fornecendo novos pontos de acesso à coleção.

Cleveland

Utiliza uma variedade de algoritmos de IA para enriquecer os metadados das obras de arte. Explora o mecanismo do Bing para adicionar dados às informações dos artistas.

  • ArtLensAI: Share Your View é uma ferramenta de pesquisa reversa de imagens que usa IA para combinar imagens dos usuários com obras de arte da coleção do museu.

Barnes Foundation

Recurso de pesquisa baseado em formas e elementos visuais. É possível explorar a coleção fazendo conexões formais de acordo com as linhas, cores, luz e espaço.

Outras usabilidades: 

pesquisa por semelhança visual; visão de conjunto (baseada na metodologia de Albert  Barnes, um teólogo ).

Recursos do Art Explorer: descoberta cognitiva; tagging; enriquecimento de dados; conexões Visuais

A sabedoria das multidões

Neste ponto imagino que vocês devem estar se perguntando: mas esta palestra não contemplava o colonialismo dos dados? Todos os exemplos remetem a projetos milionários, associados às empresas de maior parte na atualidade e museus com boards de doadores superestruturados.

Ou já esqueceram o título e estão suspirando: no Brasil isso não aconteceria nunca…

É bem possível que sim. Mas isso nos abre a possibilidade de partir de outras matrizes.

As redes hoje escoam um manancial de dados que precisamos aprender a reconquistar. Afinal, somos nós os usuários que engrossamos aquele números robustos que adornam o infográgfico que mostrei sobre o que acontece na internet em 1 minuto. E se voltássemos a elas para pensar gradativamente: ou seja, criando dados a partir de outros dados.

Foi esse o norte do Artista Adam Harvey, ao decidir usar o YouTube como referência para criar arquivos que não existem no seu projeto VFRAME  (Visual Forensics and Metadata Extraction) inciado com a ONG Syrian Archive, e hoje com a Mnemonic.org, uma organização dedicada a documentar crimes de guerra, que tem como foco a identificação, em vídeos captados nas zonas de guerra, de bombas de fragmentação. Conhecidas como armas-contêineres, bombas de fragmentação são bombas que carregam outros artefatos explosivos. São uma das criações mais horrendas da Alemanha nazista e que continuam sendo usadas nas guerras do Oriente Médio, especialmente na Síria.

Adam Harvey. VFRAME

O VFRAME é um instrumento para denunciar a presença dessas bombas, que são proibidas em 120 países. Antes que se pergunte, o Brasil não é signatário dos tratados internacionais que as proíbem. Produz e exporta esse tipo de armamento. Um dos maiores problemas por esse tipo de armamento é que as bombas podem permanecer intactas, enterradas por muitos anos, atingindo a população civil. Nos últimos cinco anos, 77% das mortes por bombas de fragmentação ocorreram na Síria. Em 2017, das 289 mortes ocorridas, 187 foram registradas ali.

O VFRAME usa modelagem 3D e fabricação digital, combinados a um software de processamento de imagem com ferramentas de visão computacional e Inteligência Artificial para detectá-las. Seus algoritmos são capazes de organizar, classificar e extrair metadados de 10 milhões de vídeos, feitos nas zonas de guerra e disponíveis on-line, em menos de 25 milissegundos, identificando, nesses vídeos, o uso das bombas de fragmentação. 

O software realiza um trabalho em escala massiva impossível de se fazer manualmente. Apropriando-se de datasets e processos de machine learning, o VFRAME enuncia, assim, um contramodelo à vigilância algorítmica. Ao apostar no uso da IA e do Big Data como poderosos recursos na defesa dos direitos humanos, define também um campo nas práticas de descolonização dos dados que, no quadro de nosso projeto tem importância crucial. 

O que esse estudo nos sugere?

Se quisermos entender como é a cozinha da favela brasileira, não obteremos esses dados no Museu da Casa Brasileira, mas teremos os objetos da Casa Grande… Criar estratégias para não falar por e sim deixar que os sujeitos dos processos históricos falem de si é importante. Mais ainda, compreender que a prioridade não é criar canais de fala, mas sim de escuta. Dito de outra forma: “Resistir ao assentamento do “não-lugar” é uma estratégia de subsistência”. E isto passa por descompreender a favela como lugar de abjetos ou objeto de estudo para entendê-la como lugar de sujeitos.

(De)Composite Collections

Desenvolvido no contexto da residência intelligent.museum (ZKM/ Deutsches Museum), seu ponto de partida são coleções de arte organizadas na primeira metade do século XX e suas questões são: Quais outras histórias da arte podem emergir das leituras de IA das imagens por uma Inteligência Artificial (IA) que lê essas imagens? Como elaborar metodologias baseadas em IA para mapear os elementos constitutivos das representações do colonialismo histórico? Os sistemas de IA podem contribuir para compreender o olhar como uma construção histórica?

Seguindo os estudos do pensamento pós-colonial, que têm questionado essa abordagem, o projeto incorporou metodologias desenvolvidas no projeto demonumenta e abordou as coleções do Museu Paulista da USP e do MAC-USP, compilando datasets, organizados de acordo com alguns temas recorrentes na pintura histórica e no Modernismo brasileiro: povos indígenas, pessoas pretas, pessoas brancas e natureza tropical. Processados algoritmicamente com GANs, esses datasets permitiram identificar alguns elementos comuns e diferenças entre as coleções do MP-USP e do MAC-USP, em obras produzidas entre 1920 e 1955, a despeito das categorias e tipologias da história tradicional da arte. Isso porque as tecnologias de IA leem imagens a partir de imagens, revelando padrões ocultos nos conjuntos iconográficos, incluindo pinturas, gravuras e desenhos, indo além das narrativas historiográficas e estilos formais.

Através das técnicas de aprendizado de máquina, pudemos compreender a persistência da imaginação colonialista nas obras de arte, contradizendo algumas afirmações canônicas sobre as rupturas estéticas e ideológicas do Modernismo brasileiro. Essas continuidades vão desde o corpo negro nu associado ao trabalho nas plantações, a semelhança patriarcal dos homens brancos, geralmente retratados sozinhos e com roupas formais, até os povos indígenas retratados como entidades genéricas sem características particulares. No entanto, as mudanças são evidentes na representação das mulheres brancas. Enquanto a pintura histórica se concentra exclusivamente em seus rostos, a pintura moderna enfatiza o corpo da mulher. No entanto, isso é sempre entendido a partir de um ponto de vista misógino, enfatizando seus seios e o ventre (signos relacionados à maternidade). No que diz respeito às mulheres negras, o estereótipo da escravizada sensual é dominante.

E como fizemos isso? Com uma força tarefa de mais de 100 alunos, trabalhando remotamente. Criamos categorias de análises e passamos a fazer marações, com softwrea livre nas fotos. A partir de uma planilha de excel coletiva, essas coordenadas foram importadas como marcadores, o que nos permitiu treinar uma rede neural para sistematizar essas categorias e chegar aos perfis, como os que vcs viram.

Precisamos reaprender com nossos mestres.

Glauber Rocha, que diza que nossa originalidade é nossa originalidade. Pois “a denúncia das misérias latino-americanas é um prato suculento para o humanismo colonizador.” Somos mais que isso. Até por que Helio Oitica nos ensinou há muito:

Museu é é o mundo. 

Canibalizemos a tela.

Obrigada!

REPOSITÓRIOS DIGITAIS 2.0: DOS OBJETOS DIGITAIS ESTÁTICOS AOS ECOSSISTEMAS DE INFORMAÇÕES DINÂMICAS

Neste seminário de pesquisa, ministrado pelo Prof. Dr. Dalton Lopes Martins, Pesquisador Associado do nosso Projeto Temático, argumenta-se que o Arquivo Digital não deve mais ser pensado apenas como um lugar para depositar arquivos estáveis de mídia digitalizada, mas sim um sistema de informação que funcione como um mapa de redes dinâmicas de circulação da informação do patrimônio cultural.

Para tanto, Dalton Martins propõe um sistema de informação que abra espaço para a curadoria por múltiplas vozes, diferentes visões e proponha ao museu uma posição de articulador de redes e visões a respeito do patrimônio cultural. Um sistema de informação que facilite a sistematização de diferentes vozes, divergência, debate e facilite o uso de algoritmos de inteligência artificial generativa para dar apoio a novas dinâmicas de produção de informação e metodologias de documentação de objetos.

Inteligência distribuída e catalogação como crowdsourcing

Giselle Beiguelman

Arquivos digitais e Inteligências Artificiais possibilitam novas formas de organização dinâmica dos conteúdos culturais, abrindo possibilidades inéditas para o conhecimento crítico e colaborativo. Essas mesmas dinâmicas implicam desafios significativos, face à obsolescência programada e ao colonialismo dos dados. Nesse contexto, fabular arquivos mutantes, capazes de dar vazão a outras histórias das artes e das sociedades, implica pensar em modos de fomentar usos críticos das redes e outras culturas da memória. Iniciativas de catalogação baseadas em sistemas de crowdsourcing são um ponto de inflexão importante desse debate

Inciativas de catalogação distribuída em sistemas de crowd-sourcing ganham peso na reflexão sobre novos modelos de arquivamento. As iniciativas GLAM (Galleries Libraries Archives and Museums) são um ponto de partida para essa discussão. Elas compreendem as parcerias e atividades realizadas pela Wikipédia com instituições culturais, a fim de levar o acervo dessas instituições ao público online, assegurando que as informações relacionadas a esses acervos (os metadados) estejam devidamente estruturados.

Um dos casos mais bem sucedidos é o do Museu Paulista da da USP (MP-USP) que resultou em: Disponibilização das imagens relacionadas ao acervo do museu (+ de 30 mil até o momento); 6 mil metadados estruturados referentes às imagens e outros itens do acervo; Melhoria de 2.500 verbetes na Wikipédia (Maratonas de edição), relacionados à mulher na História da Arte, à figuração dos indígenas no Museu, e à problematização das lutas pela Independência do Brasil.

Digno de nota, nessa direção, é o projeto Arquigrafia, da FAUD-USP. Criado em 2008 e online desde 2011, o Arquigrafia é um ambiente colaborativo temático com cerca de 10 mil imagens de arquiteturas e espaços urbanos, disponibilizadas para livre acesso, com direitos autorais protegidos por licenças Creative Commons. Em parceria com a Seção de Material Iconográfico da Biblioteca da FAUUSP, sua equipe desenvolve um intenso trabalho de conservação de material fotográfico original, digitalização e difusão web que faculta o acesso público e gratuito a um dos mais relevantes acervos de imagens fotográficas de arquitetura e urbanismo.

Outra iniciativa que vale menção aqui, em sua capacidade de trabalhar o potencial da inteligência distribuída das redes é o projeto By the People, da Library of Congress, dos EUA, um projeto de crow-sourcing que convida o público a transcrever, revisar e taguear páginas digitalizadas das coleções da Biblioteca. As transcrições criadas pelos voluntários melhoram a pesquisa, a legibilidade e o acesso a documentos manuscritos e digitados para todos, incluindo pessoas com deficiência visual.

Todas as transcrições são feitas e revisadas por voluntários antes de serem integradas ao site da Biblioteca. “By the People” é alimentado pela plataforma de transcrição colaborativa de código aberto Concordia, desenvolvida pela Biblioteca do Congresso. Inciado em 2018, o nome desse projeto vem da frase de encerramento do Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln, que afirma: “…governo do povo, pelo povo e para o povo, não perecerá da terra.” Ao delegar a melhoria das coleções digitais da Biblioteca do Congresso aos seus consulentes, a instituição segue um movimento que a Biblioteca Pública de Nova York vem realizando desdes 2012, como o Space/Time Directory.

O projeto, que recebeu uma bolsa de 380 mil dólares, foi anunciado como um “Google Maps do passado”, com uma função de controle deslizante de tempo construída ao juntar e sobrepor mapas históricos. Um recurso semelhante a “Foursquare ou Yelp do passado”, onde qualquer local histórico pode ser encontrado em qualquer ponto no tempo. Um catálogo histórico dos materiais culturais da cidade, como fotografias, artigos de jornal, diretórios de empresas, referências literárias e dados censitários.

Uma “máquina do tempo em forma de código” – uma base de código que outras cidades podem emular para criar interfaces semelhantes. Está fora do ar, comprometido pela obsolescência programada. Porém seu código continua aberto no Git Hub. A disponibilização das formas de fazer é fundamental para pensar no fomento à Inteligência distribuída.

Estudos de caso: arquivos contra-hegemônicos

Nossas discussões sobre formatos de arquivos contra-hegemônicos e distribuídos focaram alguns estudos de caso. Esses estudos são fundamentais para nos aproximar do desenho que queremos para formular o acesso a acervos que não existem, especialmente sobre a arquitetura e o design brasileiros nativamente digitais, mas também sobre arte digital. [1]

Estudos de caso

Os estudos de caso em que nos concentramos, para parametrizar o desenvolvimento de arquivos baseados em sistemas de IA são:

  • (De)Composite Collections
  • On Broadway
  • VFRAME

(De)Composite Collections

Giselle Beiguelman, Bruno Moreschi e Bernardo Fontes, 2021

Desenvolvido no contexto da residência intelligent.museum (ZKM/ Deutsches Museum), seu ponto de partida são coleções de arte organizadas na primeira metade do século XX e suas questões são: Quais outras histórias da arte podem emergir das leituras de IA das imagens por uma Inteligência Artificial (IA) que lê essas imagens? Como elaborar metodologias baseadas em IA para mapear os elementos constitutivos das representações do colonialismo histórico? Os sistemas de IA podem contribuir para compreender o olhar como uma construção histórica?

Seguindo os estudos do pensamento pós-colonial, que têm questionado essa abordagem, o projeto incorporou metodologias desenvolvidas no projeto demonumenta e abordou as coleções do Museu Paulista da USP e do MAC-USP, compilando datasets, organizados de acordo com alguns temas recorrentes na pintura histórica e no Modernismo brasileiro: povos indígenas, pessoas pretas, pessoas brancas e natureza tropical. Processados algoritmicamente com GANs, esses datasets permitiram identificar alguns elementos comuns e diferenças entre as coleções do MP-USP e do MAC-USP, em obras produzidas entre 1920 e 1955, a despeito das categorias e tipologias da história tradicional da arte. Isso porque as tecnologias de IA leem imagens a partir de imagens, revelando padrões ocultos nos conjuntos iconográficos, incluindo pinturas, gravuras e desenhos, indo além das narrativas historiográficas e estilos formais.

Através das técnicas de aprendizado de máquina, pudemos compreender a persistência da imaginação colonialista nas obras de arte, contradizendo algumas afirmações canônicas sobre as rupturas estéticas e ideológicas do Modernismo brasileiro. Essas continuidades vão desde o corpo negro nu associado ao trabalho nas plantações, a semelhança patriarcal dos homens brancos, geralmente retratados sozinhos e com roupas formais, até os povos indígenas retratados como entidades genéricas sem características particulares. No entanto, as mudanças são evidentes na representação das mulheres brancas. Enquanto a pintura histórica se concentra exclusivamente em seus rostos, a pintura moderna enfatiza o corpo da mulher. No entanto, isso é sempre entendido a partir de um ponto de vista misógino, enfatizando seus seios e o ventre (sgnos relacionados à maternidade). No que diz respeito às mulheres negras, o estereótipo da escravizada sensual é dominante.

O que este estudo sugere ao nosso projeto:

Os experimentos feitos em (De)Composite Collections mostram que o uso de recursos de IA pode contribuir para análises críticas que metodologias tradicionais na história da arte não são capazes de avaliar. Ao mesmo tempo, as imagens sintetizadas com redes neurais revelam seus limites para lidar com a diversidade social e a diversidade inerente aos procedimentos criativos individuais. Devido à dependência das GANs de padrões existentes, os processos de treinamento apontam para visões genéricas, tendendo a reproduzir os estereótipos da imagética colonial reformulada pelas tecnologias digitais.

On Broadway, 2015

Daniel Goddemeyer, Moritz Stefaner, Dominikus Baur, Lev Manovich (Coord.)

On Brodway” é um arquivo da avenida homônima, em Nova York, construído a partir de dados coletados no Instagram, Twitter, Google Street View, Foursquare, além dos que são provenientes do monitoramento de corridas de táxi e alguns dados econômicos. 

Inspirado em na obra “Every Building on the Sunset Strip” de Edward Ruscha  (1966), um livro de artista que se desdobra em 8,33 metros para mostrar vistas fotográficas contínuas de ambos os lados de uma seção de 1,5 milhas da Sunset Boulevard, avenida de Los Angeles. O pressuposto do projeto é que as ruas tornaram-se ruas de dados e que “Hoje, uma cidade ‘fala’ conosco em dados”:

Muitas cidades disponibilizam conjuntos de dados e patrocinam hackathons para incentivar a criação de aplicativos úteis usando seus dados. Moradores e turistas postam mensagens e mídia que incluem suas localizações no Twitter, Instagram e outras redes sociais. Como podemos utilizar essas novas fontes de informação para representar a cidade do século XXI? (grifos nossos).

O que este estudo sugere ao nosso projeto:

A pergunta formulada por Manovich é central no nosso projeto de pesquisa. A metodologia poderia ser orientada para pensarmos em um arquivo de arte, arquitetura e design com foco nas favelas, por exemplo, que tivesse o YouTube como sua fonte de dados? Um recorte temático, como “favela”, poderia ser um ponto de partida na formulação de um arquivo contra-hegemônico? Que outros recortes são possíveis e que escapam aos acervos institucionais? 

(Por outro lado, isso _ a coleta de dados massivos disponível online_ poderia contornar um problema que identificamos em nossos levantamentos: a carência de arquivos públicos sobre arquitetura e design brasileiros disponíveis online.) 

VFRAME, (2019 – em diante)

A ideia de usar o YouTube como referência para criar arquivos que não existem tem como ponto de partida o projeto VFRAME  (Visual Forensics and Metadata Extraction) de Adam Harvey iniciado com a ONG Syrian Archive, e hoje com a Mnemonic.org, uma organização dedicada a documentar crimes de guerra, que tem como foco a identificação, em vídeos captados nas zonas de guerra, de bombas de fragmentação. Conhecidas como armas-contêineres, bombas de fragmentação são bombas que carregam outros artefatos explosivos. São uma das criações mais horrendas da Alemanha nazista e que continuam sendo usadas nas guerras do Oriente Médio, especialmente na Síria.

O VFRAME é um instrumento para denunciar a presença dessas bombas, que são proibidas em 120 países. Antes que se pergunte, o Brasil não é signatário dos tratados internacionais que as proíbem. Produz e exporta esse tipo de armamento. Um dos maiores problemas por esse tipo de armamento é que as bombas podem permanecer intactas, enterradas por muitos anos, atingindo a população civil. Nos últimos cinco anos, 77% das mortes por bombas de fragmentação ocorreram na Síria. Em 2017, das 289 mortes ocorridas, 187 foram registradas ali.

O VFRAME usa modelagem 3D e fabricação digital, combinados a um software de processamento de imagem com ferramentas de visão computacional e Inteligência Artificial para detectá-las. Seus algoritmos são capazes de organizar, classificar e extrair metadados de 10 milhões de vídeos, feitos nas zonas de guerra e disponíveis on-line, em menos de 25 milissegundos, identificando, nesses vídeos, o uso das bombas de fragmentação. 

O software realiza um trabalho em escala massiva impossível de se fazer manualmente. Apropriando-se de datasets e processos de machine learning, o VFRAME enuncia, assim, um contramodelo à vigilância algorítmica. Ao apostar no uso da IA e do Big Data como poderosos recursos na defesa dos direitos humanos, define também um campo nas práticas de descolonização dos dados que, no quadro de nosso projeto tem importância crucial. 

O que esse estudo sugere ao nosso projeto?

Se quisermos entender como é a cozinha da favela brasileira, não obteremos esses dados no Museu da Casa Brasileira, mas teremos os objetos da Casa Grande… Criar estratégias para não falar por e sim deixar que os sujeitos dos processos históricos falem de si é importante. Mais ainda, compreender que a prioridade não é criar canais de fala, mas sim de escuta. Dito de outra forma: “Resistir ao assentamento do “não-lugar” é uma estratégia de subsistência”. E isto passa por descompreender a favela como lugar de abjetos ou objeto de estudo para entendê-la como lugar de sujeitos.

O YouTube como espaço crítico

A quantidade de vídeos no YouTube que documentam as favelas brasileiras, de acordo com uma busca feita no Google, é de aproximadamente 17.200.000. No que tange à arquitetura moderna, esse número cai para 1.440.000 resultados. Isso não implica uma falsa hierarquia de importância entre a favela e arquitetura moderna, mas enuncia um contraponto que não se pode deixar de problematizar, pois essas assimetrias de números de conteúdos praticamente se invertem quando atentamos para os dados sobre teses e dissertações defendidas no Brasil. Uma busca feita pelos mesmos termos na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, mostra que  presença do termo Arquitetura Moderna é 36.3% maior que o termo Favela.

Ainda que seja necessário depurar esses dados, fica claro que se quisermos fabular um arquivo de consultas sobre arte, arquitetura e design, com recorte temático nas favelas, os dados com maior consistência, estarão nas redes e não nos acervos oficiais, muito menos nos acadêmicos. 

Nesse sentido, pensar formatos de arquivos que combinem as metodologias dos processos citados pode indicar aberturas para outros modelos de arquivos para nosso Projeto Temático, forjando estratégias que vêm das potencialidades do Sul Global.

“Nossa originalidade é nossa fome”

Nessa perspectiva, aderimos a uma frase de Glauber Rocha que nos serve como norte de trabalho. Ao dizer que nossa originalidade é nossa fome, Gleuber não se propunha a referendar a uma certa abordagem que privilegia a apologia do miserabilismo, ou o comodismo do vira-latismo. Pelo contrário, enuncia uma busca por novas formas de conhecimento e engajamento que partam das fragiligilidades de nossas infraestruturas como potência para a vampirização criativa da intelig6encia distribuída e disponível nas redes.

Um aspecto essencial desse processo é o foco na interconexão nos achados que fizemos ao longo do semestre. Em especial, os resultados de nosso workshop sobre metodologias ágeis que revelou claramente nossas prioridades: o rastreamento e a absorção de bancos de dados disponíveis nas redes e a criação de APIs que sejam capazes de fazer a integração de metadados e devolvê-los de forma integrada aos nossos públicos.

Nossa prioridade (e desafio maior) reside na capacidade de absorver diversas fontes e relacioná-las a discursos críticos (o que inclui também a crítica dos próprios dados). Portanto, nosso ponto de partida não é a catalogação, mas sim o machine learning apropriado para pensar a criação de nosso próprio “crawler”.

[1] Texto elaborado por Giselle Beiguelman, a partir da transcrição da reunião on-line,  realizada em 26 de junho de 2023, com a presença de: Ana Magalhães, Bruno Moreschi, Eduardo Costa, Heloisa Espada, Paula Perissinotto, Priscila Arantes, Renata Perim .

 

Perfis de Arquivamento Digital

O avanço das tecnologias digitais têm proporcionado novas formas de arquivar e preservar obras de arte. No contexto contemporâneo, apresentam-se diferentes perfis de arquivamento digital, que buscam armazenar obras de arte em formatos eletrônicos, permitindo sua reprodução e acesso amplo 

O Livro depois do Livro - Giselle Beiguelman, 1999
O Livro depois do Livro – Giselle Beiguelman, 1999. MAC-USP

Arquivos digitais e arquivos digitalizados

Grosso modo, podem-se diferenciar dois tipos de arquivos digitais: arquivos nativamente digitais e arquivos digitalizados, que constituem duas categorias distintas, desempenhando papéis importantes no contexto do armazenamento e preservação de informações e da memória política, cultural e social. Vamos definir e diferenciar essas duas formas de arquivos. [1]

Arquivos nativamente digitais são aqueles que foram criados e existem em formato eletrônico desde sua concepção inicial. Esses arquivos são produzidos por meio de processos digitais e não têm uma contraparte física correspondente. São exemplos de arquivos nativamente digitais os documentos de texto, planilhas eletrônicas, apresentações de slides, imagens digitais, vídeos, áudios, entre outros. Esses arquivos são criados diretamente em formato eletrônico, sem a necessidade de serem convertidos ou digitalizados a partir de uma versão física.

Por outro lado, os arquivos digitalizados referem-se a documentos ou objetos que foram convertidos de seu formato físico original para um formato eletrônico. Nesse processo, utiliza-se um scanner, câmera ou outro dispositivo de digitalização para capturar uma imagem ou uma representação eletrônica da versão física do documento ou objeto. Os arquivos digitalizados são, essencialmente, cópias eletrônicas de documentos ou objetos físicos, como livros, fotografias, pinturas, entre outros.

Do ponto de vista da sua materialidade, portanto, a principal diferença entre os arquivos nativamente digitais e os arquivos digitalizados está na forma como são criados e existem. Enquanto os arquivos nativamente digitais são produzidos diretamente em formato eletrônico, sem uma contraparte física correspondente, os arquivos digitalizados são gerados a partir de uma conversão de uma versão física para o formato eletrônico.

Outra diferença importante está na qualidade e fidelidade da representação em ambientes digitais. Os arquivos nativamente digitais tendem a oferecer uma qualidade e precisão superiores, pois são criados digitalmente desde o início, sem a necessidade de capturar uma imagem ou reprodução eletrônica de um objeto físico. Por outro lado, os arquivos digitalizados podem apresentar variações na qualidade, dependendo do processo de digitalização e das condições do objeto original.

Além disso, os arquivos nativamente digitais são mais versáteis e flexíveis em termos de edição, compartilhamento e armazenamento, pois não estão restritos às limitações físicas. Já os arquivos digitalizados, embora tenham uma representação eletrônica, ainda estão sujeitos às limitações e características do objeto físico original.

Flexibilidade x Obsolescência

Apesar da maior flexibilidade dos arquivos digitais em termos de edição, compartilhamento e armazenamento, é importante reconhecer que eles também estão sujeitos aos impactos da obsolescência tecnológica. A rápida evolução das tecnologias digitais pode tornar formatos de arquivos e softwares obsoletos em um curto período de tempo.

À medida que novas versões de programas e formatos são lançadas, os arquivos digitais criados em versões anteriores podem se tornar incompatíveis com os sistemas e aplicativos mais recentes. Isso pode resultar em problemas de acesso e visualização dos arquivos, dificultando a sua abertura ou interpretação correta.

O armazenamento de longo prazo de arquivos digitais requer atenção contínua. Mídias de armazenamento, como discos rígidos, pendrives e CDs, podem se deteriorar ou se tornar obsoletas ao longo do tempo. O avanço da tecnologia pode tornar essas mídias inacessíveis ou menos confiáveis, o que pode levar à perda de arquivos valiosos.

A obsolescência tecnológica também pode afetar os formatos de arquivo em si. Alguns formatos podem se tornar menos suportados ao longo do tempo, o que dificulta a abertura e o uso dos arquivos. A conversão ou migração de formatos de arquivo é muitas vezes necessária para garantir a sua acessibilidade e preservação contínua.

Diante desses desafios, é fundamental adotar práticas de gerenciamento de arquivos digitais que considerem a longevidade e a preservação dos mesmos. Isso pode incluir a migração periódica de arquivos para formatos mais atualizados e amplamente suportados, bem como a implementação de estratégias de backup e armazenamento redundante para evitar perdas.

Salvos pelo digital

Há entretanto obras físicas que, paradoxalmente, só tem sua existência preservada pelo processo de digitalização. Um caso interessante nessa perspectiva, é o da restauração da obra “Formas Únicas da Continuidade no Espaço”, de Umberto Boccioni, que é considerada uma peça seminal da coleção do MAC-USP e possui importância internacional. Essa escultura marca o início do movimento futurista italiano no início do século XX e exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da arte moderna posterior.

“O original em gesso, que hoje pertence ao acervo do MAC, é uma das 11 esculturas que Boccioni expôs na mostra de escultura futurista que fez em Paris, em 1913”, explica Ana Gonçalves Magalhães, atual diretora do Museu e pesquisadora à frente da pesquisa sobre a obra. “Com a morte prematura de Boccioni, em 1916, o destino de suas esculturas sofreu reveses, o que fez com que apenas três dos gessos que ele havia apresentado na exposição de 1913 sobrevivessem.”

A famosa figura abstrata, que se destaca pela nítida impressão de caminhar e se movimentar no espaço, acabou se popularizando através de uma série de tiragens em bronze realizadas, inicialmente, por encomenda do líder do movimento futurista, e amigo do artista, Filippo Tommaso Marinetti, nos anos 1930. “O fato de as tiragens em bronze terem ganhado coleções de museus no mundo inteiro, dentre os quais o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa, fez com que a historiografia da arte moderna desconsiderasse a importância do gesso para Boccioni na veiculação de seu conceito de escultura futurista.”

Com o apoio da Prefeitura de Milão e do Museo Del Novecento no exterior, e da atuação do FAB LAB Livre SP no município de São Paulo, além das parcerias com o Instituto de Física e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, foi possível construir um molde 3D da escultura de Boccioni, permitindo que a obra seja preservada e difundida. O processo, que envolveu tecnologias de escaneamento, radiografia e análises de imageamento, consideradas não destrutivas, indica assim outras nuances na discussão de acervos digitais. 

Mesmo não sendo nativamente digital, a construção desse novo molde funciona como um parâmetro relevante para refletir sobre o arquivamento digital de obras não nativamente digitais, mas que só podem circular atualmente devido à existência de sua cópia digital. É um equívoco, no entanto, identificar o arquivo 3D como a própria obra, pois ele é apenas uma representação virtual. Nesse sentido, abrem-se outras questões relacionadas aos arquivos digitais, como saber se esse arquivo pode ser disponibilizado, e se ele representa a obra em si ou se é considerado outra obra. 

É importante destacar, ainda, que o objetivo principal desse tipo de digitalização, como a que foi feita a partir do molde de gesso de Boccioni, não é apenas reproduzir a obra, mas também contar sua história e preservar sua relevância no contexto artístico. Em relação a artistas como Palatnik e Waldemar Cordeiro, cujas obras exploram a interseção entre arte e tecnologia, e que sofrem os impactos do processo de obsolescência programada, poderia ser válido considerar a fabricação das peças originais e inseri-las como documentos técnicos, permitindo uma compreensão mais completa do processo criativo e da materialidade da obra.

Há que se contemplar, também, outros desafios, quando a obra demanda uma materialidade específica, como no caso de uma artista como Tacita Dean. O trabalho de Dean envolve elementos que não podem ser reproduzidos digitalmente, como projetores super-8 específicos, que colocam em questão a viabilidade de arquivar completamente suas criações nesse formato. 

É importante considerar também a diferença entre o digitalizado e o digital do ponto de vista arquivístico. Enquanto o digitalizado se refere a uma cópia eletrônica de uma obra física, o digital envolve a criação de uma obra diretamente em formato eletrônico, sem uma contraparte física. Essa distinção é fundamental para compreender como as obras são arquivadas e preservadas, bem como suas limitações e possibilidades.

A flexibilidade dos arquivos digitais implica também que as obras sejam modificadas ao longo do tempo pelo próprio artista. Por exemplo, a artista Regina Silveira atualizou sua obra Paradoxo do Santo ao longo do tempo, criando outras versões e descolando-se da documentação do MAC-USP sobre as obras. Já Giselle Beiguelman, pactuou na próprio processo de doação de O Livro depois do Livro, ao mesmo museu, que a obra teria seus arquivos atualizados sempre que necessário, cabendo à instituição preservar a versão original doada ao Museu e sua versão atualizada. Processo semelhante foi feito pela artista no processo de doação de Recycled ao Museu Nacional da República, seguindo um procedimento já utilizado pelo ZKM, quando da incorporação de Sometimes Always/ Sometimes Never ao seu acervo museológico.

Nessa perspectiva, as conversas com artistas em vida desempenham um papel crucial na abordagem de arquivamento digital. Ao manter um diálogo contínuo com os artistas, é possível obter informações valiosas sobre suas intenções e instruções específicas para a obra, contribuindo para uma preservação mais fiel e autêntica.

Obras colaborativas também são um desafio para o arquivamento digital, especialmente quando envolvem participação do público no processo de construção das obras, ou componentes multimídia, como a obra Sal sem carne (1974), de Cildo Meireles, que inclui capa, encarte, LP e áudio. É necessário estabelecer diretrizes claras sobre como essas obras devem ser preservadas e apresentadas digitalmente, garantindo que todas as partes envolvidas sejam adequadamente reconhecidas e representadas.

Nesse contexto, o artista vivo desempenha um papel fundamental ao doar o arquivo e as instruções da obra. Ao fornecer orientações precisas sobre como a obra deve ser arquivada e apresentada, o artista assegura que sua visão e intenção sejam preservadas. No entanto, é importante considerar se essas instruções devem ser específicas para um suporte particular ou mais genéricas, permitindo a adaptação da obra em diferentes contextos e plataformas.

Arquivos distribuídos e plataformas centralizadas

A era digital trouxe consigo novas possibilidades no campo do arquivamento, permitindo a concepção de acervos distribuídos e unificados em plataformas centralizadas. Um exemplo notável é o arquivo do FILE (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica), que utiliza essa abordagem inovadora para preservar e compartilhar o trabalho de diversos artistas.

No arquivo do FILE, as páginas dos artistas são extraídas das fichas de inscrição, fornecendo informações detalhadas sobre suas obras, trajetórias e contribuições para a linguagem eletrônica. Essa abordagem garante que o arquivo seja alimentado diretamente pelas fontes originais, mantendo a precisão e a integridade das informações.

Uma solução interessante proposta pelo arquivo do FILE é a incorporação dos verbetes dos artistas na Wikipedia. Essa integração permite uma compatibilização de IDs entre o site do FILE e a Wikipedia, unificando as informações e facilitando o acesso e a pesquisa sobre os artistas e suas obras. Dessa forma, o arquivo do FILE não apenas preserva o material original, mas também enriquece a documentação existente na Wikipedia, ampliando o alcance e a visibilidade dos artistas e de sua contribuição para a linguagem eletrônica.

No entanto, apesar das vantagens do arquivamento digital e das soluções adotadas pelo arquivo do FILE, existem desafios significativos a serem enfrentados. Um dos principais desafios é a sustentabilidade e a preservação a longo prazo dos arquivos digitais. A rápida evolução tecnológica pode levar à obsolescência de formatos de arquivo e tornar difícil a recuperação e o acesso aos dados armazenados.

Além disso, a integração entre plataformas e sistemas diferentes requer um cuidadoso gerenciamento de metadados e padronização de formatos. A compatibilização de IDs e a unificação das informações entre o arquivo do FILE e a Wikipedia exigem esforços contínuos de coordenação e colaboração entre as equipes responsáveis por essas plataformas.

Outro desafio está relacionado à autenticidade e à integridade dos arquivos digitais. Como garantir a autenticidade das obras e dos registros em um ambiente digital em constante mudança? Questões de direitos autorais e proteção dos dados também precisam ser abordadas para garantir a conformidade legal e ética no arquivamento digital.

Apesar desses desafios, o arquivamento digital e a criação de acervos distribuídos oferecem oportunidades únicas para preservar, disseminar e democratizar o acesso ao patrimônio cultural. Ao desenvolver soluções, como a integração com a Wikipedia, o arquivo do FILE mostra como é possível criar um ambiente colaborativo, interconectado e confiável para a preservação e o estudo não só de obras de arte nativamente digitais, mas também para o desenvolvimento de uma um arquivo inovador no campo da Arquitetura e do Design.


 [1] Texto redigido pelo ChatGPT, a partir de anotações da reunião realizada no dia 25 de maio de 2023, com a participação de Bruno Moreschi, Eduardo Costa, Giselle Beiguelman, Heloisa Espada, Paula Perissinotto, Priscila Artantes. Edição e revisão: Giselle Beiguelman.