Mukurtu: decolonizar o digital, reescrever os metadados

Mukurtu é uma plataforma digital de código aberto criada para responder às necessidades específicas de povos indígenas no campo da curadoria digital e da gestão de patrimônio cultural. Desenvolvido no Center for Digital Scholarship and Curation da Washington State University, Mukurtu é mais que um sistema de gerenciamento de conteúdo: é uma ferramenta de soberania digital construída a partir do diálogo contínuo com comunidades que historicamente foram excluídas dos modos institucionais de arquivamento, descrição e acesso.

Desde sua origem, Mukurtu foi guiado por um princípio simples e radical: as comunidades devem ter controle sobre como seus saberes e materiais culturais são descritos, compartilhados e acessados. A plataforma permite configurar diferentes níveis de acesso — abertos ou restritos, temporários ou cerimoniais — e incorporar narrativas tradicionais e epistemologias locais aos metadados de objetos digitalizados. Ao contrário de sistemas que impõem categorias universais, Mukurtu opera com a lógica da multiplicidade: há espaço para mais de uma descrição, mais de um registro, mais de uma verdade.

A inspiração para o projeto veio do trabalho de Kimberly Christen com a comunidade Warumungu, na Austrália Central. O nome “Mukurtu”, em língua Warumungu, significa “bolsa sagrada” — um lugar seguro para guardar objetos de valor cultural. Essa metáfora orienta toda a filosofia do sistema: o arquivo digital como espaço de cuidado, respeito e autonomia.

Um dos recursos centrais da plataforma são os Traditional Knowledge (TK) Labels, rótulos que adicionam informações culturais específicas a materiais que estejam em domínio público ou sob posse de terceiros. Esses rótulos possibilitam que as comunidades insiram suas próprias restrições, atribuições e contextos de uso, mesmo quando os materiais circulam fora de seus territórios. Isso é especialmente importante diante do legado das práticas coloniais de coleta, que descontextualizaram e descreveram de forma imprecisa (ou ofensiva) milhares de objetos que hoje integram coleções digitais públicas.

Como observa Christen, o problema não é apenas o objeto em si, mas os sistemas que continuam a recircular metadados errôneos, estereotipados ou racistas. Ao permitir que esses metadados sejam revistos e reescritos por quem detém o conhecimento sobre os objetos, Mukurtu propõe uma verdadeira descolonização da descrição.

Um exemplo marcante de aplicação da plataforma é o Plateau Peoples’ Web Portal, desenvolvido em colaboração com oito nações indígenas da região do Plateau e instituições como a Smithsonian e a Library of Congress. Nenhum item é digitalizado sem consulta prévia com a comunidade, e a curadoria dos objetos é feita em conjunto, permitindo a inclusão de nomes tradicionais, histórias orais, múltiplas interpretações e protocolos de acesso.

Ao propor essa escuta, Mukurtu rompe com a autoridade única dos arquivos tradicionais. Em vez de impor, a plataforma pergunta. Em vez de extrair, restitui contexto. Em vez de catalogar do alto, convida a cocriar desde o território.

Mukurtu não é apenas uma tecnologia, mas uma infraestrutura política. Um convite a repensar os próprios fundamentos do arquivamento: quem pode ver, quem pode contar, quem pode nomear. Em tempos de vigilância algorítmica, Mukurtu oferece uma resposta ancestral e atual: arquivar pode ser também um ato de cuidado e reparação.

🔗 Saiba mais: mukurtu.org | archive.firstnationsmedia.org.au