Arquivos digitais oferecem muitas formas de acesso ao patrimônio cultural. Dados e metadados das imagens e textos podem ser pesquisados e analisados por humanos e máquinas, mas essa riqueza de informações frequentemente permanece restrita a uma estrutura com viés visual. O projeto Odeuropa confronta diretamente essa tradição “centrada no olho”, defendendo a integração de informações olfativas em coleções digitais. Inger Leemans, pesquisadora principal do projeto, apresentou a pesquisa “Nose-First. Towards an Olfactory Gaze for Digital Art History” no congresso Cidoc 2024, destacando dimensão olfativa na história da arte e nas coleções digitais.
Com o projeto Odeuropa, Leemans e equipe sugerem uma compreensão mais rica do passado, que vai além das limitações do domínio visual e amplia a experiência sensorial a partir da inclusão de informações olfativas sobre as obras.
Ampliando os sentidos
Essa proposta evoca a crítica de Jonathan Crary em sua obra seminal, “Técnicas do Observador” (2012). O argumento central de Crary gira em torno da natureza historicamente construída da visão. Crary detalha meticulosamente como o ato de ver não é um processo neutro e objetivo, mas sim moldado por forças sociais, tecnológicas e institucionais específicas. O “observador” não é simplesmente um receptor passivo de estímulos visuais, mas um indivíduo inserido em um sistema de regras e convenções que ditam como e o que ele percebe. Esse sistema, de acordo com Crary, está ligado às demandas da modernidade, incluindo a ascensão do capitalismo industrial e a necessidade de corpos disciplinados e produtivos.
Em artigo, os pesquisadores confrontam a primazia visual, destacando a negligência de outros sentidos nas instituições de patrimônio cultural. Os autores apontam que “como os institutos de patrimônio, bem como os estudiosos de humanidades e ciência da computação, têm uma longa tradição de pensamento ocular-cêntrico, é difícil encontrar informações relevantes sobre o cheiro em coleções digitais”. Essa omissão, argumentam eles, não apenas limita nossa compreensão do passado, mas também reforça uma ordenação hierárquica dos sentidos que privilegia a visão sobre outras formas de experiência sensorial. Assim como o observador de Crary, que é confinado pelas técnicas que moldam a visão, nossa compreensão do passado é confinada pelas técnicas e sistemas que priorizam os dados visuais.
Odeuropa
O projeto Odeuropa propõe soluções concretas para resolver esse desequilíbrio, incluindo o desenvolvimento de um banco de dados de informações olfativas relacionadas a obras de arte históricas e o uso de metodologias de visão computacional para mineração sensorial. Uma das ferramentas criadas é a “roda de aromas” que explora como as interfaces digitais podem ser redesenhadas para incentivar um “olhar olfativo”. O projeto como um todo enfatiza este “olhar olfativo” como “o ato de analisar imagens e textos com a olfação em mente, rompendo com um ‘regime escópico’ ou domínio visual, e assim revelando palavras, narrativas, objetos, aromas e seus artefatos relacionados, que teriam permanecido invisíveis em uma perspectiva puramente visual” (Ehrich et al., 2021, p. 4). Esse conceito desafia diretamente os modos estabelecidos de interação com o patrimônio digital, da mesma forma que Crary destacou como o papel do observador evoluiu no século 19 com novas compreensões da óptica e do corpo humano.
Técnicas de IA aplicadas aos bancos de dados
O projeto Odeuropa ao criar um olhar olfativo para a história da arte digital expande a noção de patrimônio sensorial a partir da aplicação de técnicas de IA aplicadas a datasets de texto e imagem de patrimônio cultural. Aqui estão alguns projetos desenvolvidos:
Odeuropa Smell Explorer: um mecanismo de busca exclusivo para todos os interessados na história e na herança do olfato. É um site que permite aos visitantes navegar por mais de 300 anos de história do olfato europeu, descobrir os cheiros do passado e entender como eles moldaram a história europeia.
Enciclopédia da História e Patrimônio do Olfato: uma ferramenta de referência online que reúne conhecimento acadêmico e criativo sobre o olfato como fenômeno cultural. A Encyclopedia busca identificar, consolidar e promover o conhecimento do amplo papel que os aromas e o olfato têm em nossa herança cultural e história
Kit de ferramentas para contar histórias olfativas: um guia prático para trabalhar com cheiros em museus e instituições patrimoniais. O kit de ferramentas fornece um ponto de partida para profissionais do patrimônio cultural usarem o cheiro como uma técnica de narrativa e oferece as ferramentas necessárias para começar.
Biblioteca do Olfato do Patrimônio da Odeuropa: Um dos resultados do projeto Odeuropa são as representações olfativas de aromas patrimoniais: composições olfativas, informadas por pesquisa (histórica), de cheiros que são ou foram significativos para culturas (europeias) específicas.
Contribuições do projeto
O mapeamento de cheiros da história da arte oferece uma contribuição valiosa para o campo do patrimônio sensorial, abordando a negligência histórica da olfação em coleções digitais. Ao defender um “olhar olfativo”, os autores se baseiam na estrutura crítica de Crary e oferecem um caminho para uma compreensão mais inclusiva e multissensorial do passado. Esta pesquisa nos desafia a reconsiderar as maneiras pelas quais nossos sentidos moldam nossas percepções e compreensão do mundo.
O projeto Odeuropa oferece grandes contribuições ao Projeto Temático Acervos Digitais e Pesquisa, indicando uma forma inovadora de explorar os dados e metadados de arquivos do patrimônio cultural. Semelhante ao nosso trabalho com o acervo do Arquigrafia e com as imagens do 8 de janeiro, a equipe do Odeuropa aplicou o sistema de visão computacional em imagens. No caso do Smell Explorer, por exemplo, após um conjunto de 5000 imagens serem anotadas manualmente, a equipe treinou o computador para reconhecer elementos similares relacionados a cheiros e usou técnicas de aprendizado de máquina para expandir o banco de dados.
Além de deixar todo o processo do trabalho acessível em seu github, o projeto com arquivos de cheiros embasa nosso interesse em explorar os objetos enredados confirmando que sistemas de inteligência artificial podem trazer grandes possibilidades para arquivos existentes e criar conexões que ainda não existem.
Conheça: